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Crítica | Fundação – 2ª Temporada

O plano B dentro do plano A.

por Kevin Rick
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A primeira temporada de Fundação já havia deixado claro o projeto ambicioso da Apple TV+ em traduzir o monumental trabalho de Isaac Asimov para uma linguagem audiovisual capaz de equilibrar espetáculo visual e densidade filosófica. Apesar de entender as críticas negativas do meu colega Roberto Honorato, principalmente em relação ao final meio corrido e cheio de conveniências, tenho uma opinião bastante diferente do ano de estreia, que vejo com olhos bem mais positivos, não só no escopo da direção de arte dos cenários grandiosos, mas também no desenvolvimento da premissa fascinante, na construção da intriga política com camadas de conspiração e na apresentação dos personagens principais, mesmo com diversas características se afastando do texto original. Foi uma temporada que pecou, às vezes, pela irregularidade narrativa e por decisões criativas que diluem certas qualidades do material de origem, mas que entregou a sensação rara de assistir a uma ficção científica televisiva que almeja algo verdadeiramente épico, original e instigante de assistir para descobrirmos para onde vai o plano insano de Hari Seldon (Jared Harris) – sempre que a série foca na teoria e seus desdobramentos, penso que o nível de interesse e qualidade aumenta consideravelmente.

A segunda temporada opta por dobrar a aposta, abraçando de vez um caráter quase operístico. Se antes havia a promessa da queda lenta do Império e da ascensão do mito da Fundação, agora, com um salto temporal de mais de 130 anos, a trama mergulha nas fissuras internas dos Cleons, nas intrigas palacianas e na colisão inevitável entre ciência, religião e poder. O fio condutor continua sendo Hari Seldon, ou melhor, as múltiplas versões de sua consciência, que aqui oscilam entre o mentor iluminado e o manipulador quase divino, mas a série também abre espaço para o arco de Gaal (Lou Llobell) e Salvor (Leah Harvey), que ganham contornos mais íntimos, bem como da nova geração de Terminus, que ergueu uma igreja em torno das “profecias” de Seldon. É interessante como os showrunners se permitem transformar a teoria fria da psico-história em drama humano, mesmo que, por vezes, essa opção soe melodramática demais, como abordarei mais à frente.

O núcleo imperial, novamente, rouba boa parte da atenção. Irmão Dia, interpretado por Lee Pace com uma fisicalidade arrogante e carismática, enfrenta a possibilidade do fim da dinastia genética e a ameaça cada vez mais explícita da subserviência à Demerzel (Laura Birn), cuja natureza robótica é enfim revelada em flashbacks que expandem sua tragédia secular. Essas cenas, que remontam às guerras robóticas e à prisão milenar de Demerzel, são alguns dos melhores momentos da temporada, pois ancoram a grandiosidade da narrativa e dão um senso de densidade à trama de conspiração. Inclusive, todo o núcleo do Irmão Crepúsculo (Terrence Mann) descobrindo os segredos internos do palácio são excelentes. Ao mesmo tempo, a introdução da Rainha Sareth (Ella-Rae Smith) funciona como contraponto afiado: seu sarcasmo e sua recusa em se curvar às manipulações imperiais trazem frescor, ainda que seu arco acabe às vezes sufocado pelo excesso de reviravoltas palacianas e por um namorico com o Irmão Alvorada (Cassian Bilton).

Do outro lado, o arco em Ignis caminha para a Segunda Fundação e amplia a discussão sobre livre-arbítrio. A presença dos Mentálicos, liderados por Tellem Bond (Rachel House), introduz o tema da manipulação mental e da participação importante de mutantes nesse universo, quase como uma metáfora para regimes totalitários, cultos carismáticos e párias sociais. Gaal, dividida entre o fardo de suas visões e a tentação de um destino pré-escrito, carrega a temporada para uma dimensão religiosa e sobre o tempo que adicionam novas camadas para o projeto. Para mim, esse é o arco mais problemático da temporada, com um roteiro que pesa demais a mão no melodrama de Gaal e Salvor, e que não desenvolve tanto a importância desses personagens e o papel da Segunda Fundação (que fica para mais um salto temporal). Acho o ritmo irregular em diversos pontos da trama aqui, mas, mesmo com pesares, aprecio o desfecho com o sacrifício de Salvor, que dá uma resolução bacana para seu relacionamento com Gaal e também porque reafirma que o futuro não é inevitável e que escolhas individuais ainda podem alterar o curso da história. É, talvez, o momento mais fiel ao espírito de Asimov, que sempre insinuou a tensão entre cálculo matemático e a imprevisibilidade da condição humana.

Se o arco de Hari, Gaal e Salvor busca uma reflexão existencial, o da Fundação em Terminus abraça a política em estado bruto. Hober Mallow (Dimitri Leonidas), com sua mistura de trambiqueiro e visionário, injeta humor e dinamismo em uma narrativa que poderia ficar excessivamente densa, com suas aventuras beirando o sci-fi pulp, se não fossem pelas diversas tragédias ao seu redor. Sua parceria com Constant (Isabella Laughland) e Poly (Kulvinder Ghir) dá ao espectador um trio improvável que contrasta com a pompa do Império. Não gosto tanto do romance entre os jovens, meio forçado na trama, mas de maneira geral acho mais um arco bem resolvido, ainda que eu gostaria de ter visto mais desse lado comercial pelas galáxias de Mallow, da extensão da religião de Seldon e dos aspectos militares do Império com o General Bel Riose (Ben Daniels). A destruição de Terminus, o reaparecimento da população escondida no cofre de Seldon e a ideia da Fundação como último bastião da esperança funcionam como clímax narrativo e como preparação para os próximos passos da teoria em adiar/diminuir a Segunda Crise com a presença do Mulo.

Visualmente, a temporada continua sendo um espetáculo: os cenários de Ignis, os salões dourados de Trantor, as batalhas espaciais com naves colossais que se dobram no hiperespaço, o CGI realista, entre outras qualidades técnicas. A série tem uma consciência estética rara, que sabe mesclar o épico e o minimalista, a grandiosidade cósmica e o detalhe íntimo. Essa dimensão sensorial, somada à trilha sonora que alterna entre o escopo e o contemplativo, sustenta a narrativa mesmo nos momentos em que o roteiro tropeça. 

Ao final, a segunda temporada de Fundação deixa uma sensação ambígua. É uma obra que continua fascinante em sua ousadia e beleza formal, mas que  sofre com o excesso de personagens e linhas narrativas que nem sempre se equilibram e que acabam sendo muito condensadas. Também penso que a história descamba bastante para o melodrama em alguns atos (seja no palácio ou em Ignis). O ritmo pode ser irregular, e algumas soluções como a própria batalha final contra o Império soam mais apressadas do que mereciam. Ainda assim, a temporada consegue manter vivo o coração da saga: a luta constante entre destino e liberdade, entre ordem e caos, entre a visão matemática de Hari Seldon e a imprevisibilidade da vida. Fundação segue sendo imperfeita, mas grandiosa em sua imperfeição, um épico televisivo que insiste em mirar alto quando poderia se contentar com o simples.

Fundação (Foundation) – 2ª Temporada | EUA, 2023
Criação e desenvolvimento: David S. Goyer, Josh Friedman (baseado no trabalho de Isaac Asimov)
Direção: Alex Graves, David S. Goyer, Mark Tonderai, Roxann Dawson
Roteiro: David S. Goyer, Jane Espenson, Leigh Dana Jackson, Joelle Garfinkel, Eric Carrasco, David Kob, Liz Phang, Addie Manis, Bob Oltra
Elenco: Jared Harris, Lee Pace, Lou Llobell, Leah Harvey, Laura Birn, Terrence Mann, Cassian Bilton, Alfred Enoch, Kulvinder Ghir, Ella-Rae Smith, Sandra Yi Sencindiver, Oliver Chris, Isabella Laughland, Dimitri Leonidas, Ben Daniels, Dino Fetscher, Judi Shekoni, Rachel House
Duração: 546 min. (10 episódios)

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