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Crítica | A Guerra do Fogo

Uma saga sobre a busca da humanidade em evolução pelo conhecimento.

por Leonardo Campos
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Uma jornada em busca do conhecimento. Assim é Guerra do Fogo, clássico que nos guia por uma viagem densa ao passado e mostra uma representação dos humanos diante de novas descobertas que ajudaram no estabelecimento de novas linguagens e sentimentos, numa era ainda sem códigos linguísticos gramaticais e devidamente definidos. Ao retornar depois de algum tempo ao filme, pude perceber o quão alegórico e necessário é o seu mote para aqueles interessados no discurso científico e na metodologia da pesquisa, pois a aventura épica sem diálogos tradicionais nos permite refletir e compreender que ao longo de nossas trajetórias, buscamos entender o mundo e por meio desse “saber”, criar técnicas que nos permita dominar a natureza e as coisas que gravitam em torno de nosso cotidiano. Curar doenças, descobrir a eletricidade, usar a razão para compreender as coisas como são e por que são. Isso é fazer ciência, transformar informação em conhecimento e solucionar problemas em nosso entorno. Ao longo dos 100 minutos de narrativa, contemplamos as poderosas alegorias do filme, assertivas na proposta filosófica de pensar o ser humano e seus processos de investigação e encontros.

Ao passo que as sociedades antigas evoluíram, a humanidade foi juntando as contribuições de diversas frentes e compondo o mundo tal como conhecemos hoje. Os sumérios, com o código escrito; os mesopotâmicos com a agricultura e a pecuária; os sistemas hidráulicos para bombeamento de água, oriundo dos gregos; o soro para a picada de serpentes por Vital Brasil, fundador do Instituto Butantã; a ARPANET e o Departamento de Defesa com os primeiros passos do que seria a internet; e, mais recente, a vacina contra a COVID-19, variação viral que deixou revirou o nosso planeta desde 2020 e ainda encontra ressonâncias desafiadoras em 2021, com entrada garantida na lista dos tópicos preocupantes para os próximos anos desta década que já iniciou bastante agitada social e politicamente. O conhecimento é algo que requer a pavimentação de um caminho sólido, uma jornada de aprendizagens e descobertas que são transformadoras, independentemente dos resultados encontrados. Guerra do Fogo é sobre isso.

Dirigida por Jean-Jacques Annaud, em 1981, a narrativa escrita por Anthony Burgess retrata o processo de evolução dos seres humanos primitivos, bem como aborda as relações entre esses povos e a natureza que os rodeava. Todas as transformações oriundas deste universo, tais como as novas organizações de ordem social, desenvolvimento da língua e a compreensão inicial de algumas emoções estão alegorizadas nesta história que tem a descoberta do fogo como elemento norteador das dinâmicas filosóficas do enredo. Vivendo contemporaneamente, os múltiplos grupos pré-históricos da produção se encontram em estágios evolutivos diferenciados, situação catalisadora dos embates que geram o desenvolvimento da narrativa. Aqueles que são menos evoluídos ainda possuem peculiaridades que os aproximam do que animalesco, gutural, diferente de outros que já estão inseridos dentro de uma dinâmica do ser social, com organizações, relações afetuosas e elementos da linguagem mais articulados.

Enquanto os mais evoluídos se mantinham mais “sofisticados”, os mais próximos do conceito de primitivo eram frequentemente mais nômades, alimentavam-se de ovos, insetos e folhas, trajavam vestimentas confeccionadas com peles de animais e a linguagem, gutural e com gestos corporais, dominava a dinâmica “interacional”, algo que se articula melhor quando o necessário e conflituoso contato entre tribos, propiciado pelo interesse de dominar o fogo, um recurso natural valioso para muitas coisas que viriam a ser pratica destes povos, na posteridade. Foi esse encontro que propiciou as novas organizações e demonstrou que diante de suas necessidades, os seres humanos transformaram a natureza, extraindo do espaço aquilo que era preciso para atender aos seus anseios. Esse cenário todo nos permite uma valiosa imersão, em especial, pela direção firme do cineasta e por setores específicos de sua equipe, tais como os figurinos assertivos de Penny Rose e John May, a direção de fotografia de Claude Agostini e a trilha sonora de Phillippe Sarde, todos muito eficientes para os bons resultados estéticos do filme.

Diante do exposto, Guerra do Fogo é uma narrativa que nos mostra, por meio da alegoria da busca pelo fogo, uma discussão sobre o conhecimento e a transformação dos seres humanos diante da práxis. Ao dominar e utilizar para conceber melhor bem-estar, as figuras ficcionais da história aderem ao recurso natural para melhor sobreviveram, numa época de moradias em cavernas, espaços utilizados como proteção contra ataques de animais ferozes e grandiosos, bem como a defesa do corpo diante das baixíssimas temperaturas das eras glaciais. Neste processo empreendido pelos personagens, um grupo domina a técnica do fogo, outros viam as chamas como algo sobrenatural, alguns mais primitivos ganham uma batalha e tem acesso ao fogo, mas quando o perdem, partem em busca de novas chamas. Nisso, um grupo tenta roubar fogo do outro, crises se estabelecem e nessa trajetória, todos são expostos a conhecimentos novos e que mudam para sempre a maneira como encaravam as suas vidas.

Uso de cerâmica, lançadores de flechas, prática da pintura corporal, estruturação de cabanas, uso de ervas medicinais e, o maior destaque, a oportunidade de gerar fogo por meio de atrito. Este é o panorama de novos conhecimentos adquiridos entre esses povos, pois ao passo que retornavam para as suas tribos, repassavam os aprendizados para os demais, num processo cíclico evolutivo para todos os agentes envolvidos. Partir para a jornada desconhecida é algo que surge como ponto de partida após a necessidade de encontrar e saber manusear o fogo. É como nós, diante de uma pesquisa científica. Saímos de uma zona superficial e aprendemos bastante na jornada, tendo na troca de ideias, na observação e análise, bem como nas testagens, a transformação do que foi encontrado em reflexão para o nosso trabalho. O fogo, aqui, aproxima e promove o aquecimento das emoções, exploradas pelos personagens quando descobrem o riso, o amor e o prazer. Em linhas gerais, Guerra do Fogo nos permite a reflexão sobre o ser humano como ser social, alguém em busca de se diferenciar dos animais por ter a capacidade de interferir e transformar o meio em que vive a seu favor, conforme as suas necessidades. Nesta empreitada transforma-se e muda também o “outro”.

A Guerra do Fogo (La Guerre Du Feu, Canadá/França – 1981)Direção: Jean Jacques Annaud Roteiro: Gerard Brach, S.H. Rosny SrElenco: Everett McGill, Raen Dawn Chong, Ron Perlman, Nameer El KadiDuração: 96 minutos

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