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Crítica | A Lavanderia

por Gabriel Carvalho
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“Então, se nós somos os perdedores… quem são os vencedores?”

Uma das cenas do novo longa-metragem de Steven Soderbergh possui a personagem de Meryl Streep, uma idosa que recentemente tornou-se viúva em um trágico acidente, contemplando uma possível nova moradia. Com o dinheiro do seguro de vida de seu marido, Ellen Martin poderia arcar com os custos de um imóvel em particular, passível de ressuscitar memórias de seu parceiro por tanto tempo – a janela da sala daria para a esquina onde ambos se conheceram pela primeiríssima vez. No entanto, a sua visão de lá, que enxerga um conteúdo extremamente íntimo na compra do apartamento em questão, não importa para os negócios – no caso, o mercado imobiliário, um dos mais problemáticos que existem. As pessoas em si não são humanas o bastante para o sistema retratado na obra irônica e crítica de Soderbergh, mas peças de um enorme buraco de coelho permeado de situações questionáveis. O cineasta, aqui, aponta aqueles que são prejudicados ao passo que, diante de suas misérias, poucos crescem. Como citam os narradores, personagens interpretados por Gary Oldman e Antonio Banderas, há pouquíssimos milionários e bem menos bilionários no mundo. De resto, temos as pessoas ordinárias, como a própria Ellen, os funcionários pobres das empresas fraudulentas, que assinam papéis que nem sabem o que significam, e até os donos de pequenos negócios – como o do barco que causa o acidente do início do longa, por azar.

Os melhores momentos da obra em questão entendem justamente esse contraponto moral, acerca dos ricos que procuram ser mais e mais ricos e os pobres que se esforçam rotineiramente para não terminarem sendo mais e mais pobres. Em termos narrativos, a obra possui muito mais apelo quando concentra-se, portanto, na jornada pessoal da personagem de Meryl Streep, supostamente a protagonista do projeto. Ellen, no caso, principia uma investida contra empresas misteriosas, investigando aquelas que supostamente deveriam estar cobrindo o caso que encerrou a vida do seu marido. Em cenas intimistas, como a citada no começo do texto, a artista incorpora bem o sentimento do cidadão comum em meio a esquemas onde suas vidas não importam tanto quanto o dinheiro de outros. Há a desolação, claramente, porém, também um anseio por revolta, que vai encaminhando a personagem para situações de confronto – vide sua chegada a um dos tantos paraísos para estes ricaços, Niue, colocando-a frente a frente de Boncamper (Jeffrey Wright), um dentre os tantos envolvidos nestes esquemas ilegais. Em conjunto com isso, David Schwimmer e Robert Perry vivem os personagens responsáveis pelo barco naufragado. Para nós, suas cenas estabelecem as primeiras conexões com as negociações escusas dos donos da Mossack Fonseca – que tem algo a ver com a AGP, que era a antiga Monarch, que é segurada pela United. Confuso?

Para explicar tintim por tintim para nós, Soderbergh usa do mesmo método que Adam McKay usou em longas seus. Como as tramoias destas mentes criminosas não seriam naturalmente instigantes para um público fora do seu nicho, o texto e a direção buscam trazer um senso mais espirituoso. Logo, apresenta-se no cerne de tudo o escritório de advocacia, o Mossack Fonseca, que encabeça os Papéis do Panamá, um dos maiores vazamentos de dados da história. Ele entregaria a verdade por trás de pessoas como Jürgen Mossack, vivido por Gary Oldman, e Ramón Fonseca, vivido por Antonio Banderas. O que se perde nessas incursões, porém, é o ponto de vista mais sensível que Soderbergh aplica em demais oportunidades. Dentre estas cenas que quebram a quarta parede, uma das únicas que usam o contraste entre os mansos e os ricos é a relacionada ao passado de Fonseca e suas lembranças de um padre. O restante, por outro lado, usufrui de um didatismo desnecessário. Ninguém irá verdadeiramente aprender alguma coisa acerca dos negócios ilegais perpetuados por estas pessoas através das narrações de Oldman e Banderas. No mais, tais segmentos desdobram-se em outros, com nenhuma relação objetiva com a narrativa trágica de Ellen. Num dos casos, por exemplo, vinte minutos são gastos apenas para o longa nos deixar a par de uma aula básica de suborno – como a legenda que nomeia o seu capítulo faz questão de expor.

Enquanto Oldman e Banderas não cansam de explicitar que esta é a versão deles da história dos Papéis do Panamá, a realidade é que a obra está preocupada em condená-los moralmente de uma maneira expressiva, contradizendo-se. O cineasta, no caso, prefere, pela narração ácida, ser mais moderno e veloz, polêmico, esquecendo pontualmente dos seus fins principais – suas críticas. O interesse de Soderbergh no brownface, por exemplo, não é muito complexo: quando Ellen precisa sair do jogo em que se encontra, acerca da destruição destas empresas fraudulentas, entra Elena no seu lugar. Ela é uma das funcionárias da Mossack Fonseca, sendo usada como peão pelos personagens de Oldman e Banderas. Meryl Streep interpreta ambas, mas Elena, em específico, é latina. Logo, margeia-se uma maquiagem carregada, sotaque carregado e próteses carregadas, invocando estereótipos muito marcantes. A relação de proximidade entre Ellen e Elena, entretanto, até que é justificada. Na última cena do longa-metragem, o John Doe responsável pelo vazamento dos Papéis do Panamá é personificado justamente na voz deste segundo papel de Streep, gente como a gente. O anônimo é alguém menor em meio a isso tudo, compreende Soderbergh, usado pelos poderosos, porém, também capaz de derrubá-los. Uma pena essas virtudes se perderem ao passo que o cineasta as soterra em prol das excentricidades, que diminuem propósitos dramáticos.

A Lavanderia (The Laundromat) – EUA, 2019
Direção: Steven Soderbergh
Roteiro: Scott Z. Burns
Elenco: Meryl Streep, Gary Oldman, Antonio Banderas, Jeffrey Wright, Melissa Rauch, Sharon Stone, David Schwimmer, Matthias Schoenaerts, James Cromwell
Duração: 96 min.

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