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Crítica | A Liga Extraordinária – Vol. 2

por Ritter Fan
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A “Liga da Justiça literária” que Alan Moore criou no primeiro volume de A Liga Extraordinária é absolutamente fascinante, um daqueles exemplos da Nona Arte que merece lugar de destaque na estante de qualquer leitor sério de quadrinhos, além de releituras constantes, quase que de forma ritualística. Trabalhando a partir de uma ideia simples – a reunião de personagens da literatura vitoriana britânica em uma espécie de “super-grupo” para lutar contra o mal – Moore recheia sua criação com camadas e mais camadas de detalhes, mitologia e erudição que, para seu aproveitamento completo, exige pesquisa e muita leitura por parte de quem realmente se interessar pela Liga.

Indo muito além dos cinco membros que formam A Liga Extraordinária, Wilhelmina “Mina” Murray (ex-esposa de Jonathan Harker, objeto do desejo do Conde Drácula), Allan Quatermain (intrépido caçador e aventureiro do continente africano, basicamente um antepassado de Indiana Jones), Capitão Nemo (preciso mesmo identificar quem é?), Dr. Jekyll e seu alter-ego Mr. Hyde (ou seria o contrário?) e Hawley Griffin, o Homem Invisível, Alan Moore nos apresenta ao seu mundo coeso em que cada página oferece uma enorme riqueza de preciosidades. No segundo volume, que se passa pouco depois dos eventos do primeiro, temos como base narrativa o romance de ficção científica A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, com a invasão marciana na Terra acontecendo a partir da Inglaterra. Tudo do livro está lá, desde o astrônomo real Stent até os tripods marcianos que funcionam como um meio de locomoção a seres biológicos quase amorfos, passando pelo raio de calor, pelas ervas daninhas vermelhas e, claro, o famoso final.

Mas Alan Moore começa antes e se aproveita brilhantemente de duas obras da primeira metade do século XX que se passam em Marte (apesar da ação toda da graphic novel se desenrolar em 1898): a pouquíssimo conhecida As Férias do Tenente Gullivar Jones (Lieut. Gullivar Jones: His Vacation), escrita por Edwin Lester Arnold e a mais famosa – e que foi inspirada na primeira – Uma Princesa de Marte (e suas continuações), de Edgard Rice Burroughs, tendo como protagonista John Carter. Utilizando os dois personagens em um primeiro capítulo quase que completamente sem diálogos (descontando os que são travados em “marciano”, claro) vemos, em Marte, uma guerra contra os Moluscos ser travada por Carter e Gullivar, sua consequente vitória e a fuga dos monstros, claro, para a Terra.

Com isso, Moore consegue, buscando na literatura, explicar a razão da vinda dos Moluscos para nosso planeta e, de quebra, ainda dá oportunidade a Kevin O’Neill de desenhar talvez sua mais sensacional sucessão de quadros, com detalhes impressionantes e de uma criatividade ímpar que em momento algum, porém, traem os seres e criaturas que são descritas nos livros que foram usados de inspiração. Reparem, por exemplo, como Gullivar é retratado com traje de beduíno, lembrando muito Lawrence da Arábia (podem ter certeza que isso não foi coincidência) e como John Carter ganha um aspecto militar muito mais crível considerando sua posição e condição em Marte, do que Burroughs descreve. E as cores usadas por Dimagmaliw são de tirar o fôlego, com tons de vermelho e verde que saem do lugar comum, mas passam, sem palavras, desolação, perigo, morte e esperança em graus semelhantes. Se esse segundo volume da Liga fosse apenas esse primeiro capítulo, a história já teria lugar cativo em minha biblioteca.

No entanto, é claro, a partir do segundo capítulo (são apenas seis), Moore reintroduz a Liga Extraordinária. Recém formada e recém saída de uma vitória contra os planos maquiavélicos do Professor Moriarty, a Liga é imediatamente acionada pelo novo M (Mycroflt Holmes, irmão de Sherlock) e por Campion Bond (personagem inexistente na literatura, mas que Moore usa como tataravô de outro Bond famoso…) para lidar com a invasão extraterrestre que se desenrola de maneira muito semelhante ao que podemos ler na obra de Wells, com crateras profundas, seres construindo os tripés mecânicos e muita morte com o raio de calor.

É a partir daí, porém, que Moore escorrega um pouco em seu trabalho narrativo.

E eu explico a razão: a Liga, muito diferente do que vemos no primeiro volume, é passiva e quase não tem verdadeiramente o que fazer. Os “heróis” correm para um lado, correm para o outro, mas, no miolo da graphic novel, eles não têm muito mais o que fazer. Se, antes, essa seção “do meio” foi preenchida por uma instigante investigação em que cada membro da Liga tinha seu relevante papel, agora não vemos nada disso e a obra sofre uma espécie de soluço que demora a passar.

Somente a partir do estranhamente excitante romance entre Mina Murray e Allan Quatermain e o extremamente violento encontro entre Mr. Hyde e Griffin é que somos retirados do estupor. E isso acontece como um choque de mil volts passando por nosso corpo. Murray e Quatermain se envolvem com o fascinante Dr. Moreau (de A Ilha do Doutor Moreau, também de Wells) em uma doentia sequência que envolve sexo, mais sexo e, de certa forma, bestialidade – isso é Alan Moore, afinal de contas! – para levar para Londres a potencial arma de defesa contra os extra-terrestres (e, como easter eggs, tente nomear os diversos seres híbridos da literatura que O’Donnell faz desfilar na nossa frente!).

Do outro lado, Mr. Hyde, que suprime completamente a persona do Dr. Jekyll, sai para procurar o traidor Griffin e, novamente, em uma sequência doentia e lindamente revoltante, obtém sua vingança em um estilo que nem Tarantino ousaria imaginar. O jantar que se segue, com Hyde explicando ao Capitão Nemo e ao cocheiro William Samson (o Lobo de Kabul, das tiras de jornal dos anos 20 na Inglaterra) o porquê de ter tomando controle completamente de seu corpo é um exemplo de como escrever quadrinhos. Esse longo momento nos faz esquecer da morosidade do meio da obra, pois é um primor da conjunção de diálogos relevantes com imagens que raramente se vê em quadrinhos. A revelação do que aconteceu entre Hyde e Griffin é orgânica, extremamente elaborada e desenhada em quadros simples no formato 1-3-3, 3-3-3 e 1-3-3 que arrancam do leitor as mais fortes emoções e a necessidade de se ler e reler as páginas para acreditar no que está acontecendo.

Sem perdoar seus personagens no final, Moore usa seu segundo volume literalmente para fechar uma história maior, formada por duas graphic novels. Ele aproveita a pausa, também, para nos proporcionar um mergulho mais detalhado no lado psicológico de cada personagem que vai além do monólogo de Hyde que citei e aborda, ainda, o passado de Mina Murray, com a união “pecaminosa” entre sexo e desejo animal, além de inserir um sem-número de referências a outras obras do período.

E, para os leitores que não forem preguiçosos, Moore ainda nos deixa nada menos do que valiosas 45 páginas em prosa, com esparsas ilustrações, do “Almanaque do Novo Viajante”, em que lida, com incrível nível de detalhamento, as aventuras de Mina Murray pesquisando sobre o passado da Liga Extraordinária e suas aventuras até 1913. A leitura dessas páginas é extremamente importante para entender exatamente o que acontece com ela e com Quatermain ao longo desses anos e como suas aventurais continuariam nas graphic novels posteriores de Moore dentro do mesmo universo, além de introduzir os personagens Prospero e Orlando (só para se ter uma ideia do rigor estilístico de Moore, as citações de Prospero são em pentâmetro iâmbico!) que aparecerão em O Dossiê Negro e no Volume 3.

Mesmo não sendo exatamente no mesmo nível do primeiro volume, A Liga Extraordinária – Vol. 2, é um tour de force da Nona Arte que está anos-luz a frente da grande maioria das obras atuais em quadrinhos.

A Liga Extraordinária – Vol. 2 (The League of Extraordinary Gentlemen – Vol. 2)
Roteiro: Alan Moore
Arte: Kevin O’Neill
Cores: Benedict Dimagmaliw
Letras: Bill Oakley
Publicação original: Wildstorm (hoje selo da DC Comics), de setembro de 2002 a novembro de 2003 (6 edições); setembro de 2004 (1ª edição do encadernado)
Publicação no Brasil: Devir
Páginas: 228 (edição encadernada americana)

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