Em um universo paralelo, em que A Longa Marcha e não Carrie, a Estranha, foi o primeiro romance publicado de Stephen King, o ilustre morador do Maine consolidou-se como um escritor de nicho, lido por um número relativamente pequeno, mas muito fiel de leitores, firmando-se não no horror sobrenatural, mas sim no horror real e cotidiano, em obras pesadas e sombrias, que não dão respiro a seus fãs e que por isso mesmo acabaram afastando um público mais amplo e vasto que ele talvez pudesse ter angariado se tivesse seguido por outro caminho. Foi algo assim que imaginei quando finalmente virei a última página de A Longa Marcha, efetivamente o primeiro romance que Stephen King escreveu, entre seus 19 e 20 anos, no primeiro ano de faculdade, mas que ele só publicaria cinco anos depois de Carrie e, mesmo assim, sob seu famoso pseudônimo Richard Bachman, criado, de acordo com ele, para driblar a impressão geral das editoras da época de que um romance por ano de cada autor era o máximo que o que o mercado suportava.
A Longa Marcha é um livro de Stephen King, sem dúvida, mas ao mesmo tempo não é e, se o então futuro Mestre do Horror tentou levá-lo à publicação e teve seu manuscrito rejeitado, é perfeitamente possível entender o porquê e esse porquê não tem relação alguma com a qualidade de seu trabalho, muito ao contrário até. Eventuais negativas ao romance também certamente não se deram por ele ser pesado ou sombrio, mas sim por ele ser uma obra eminentemente pessimista, carregada de uma visão de mundo desesperançosa e niilista sem nenhum tipo de alívio ao longo de suas mais de 300 páginas. Trata-se de uma jornada literária em que o leitor precisa estar no estado de espírito correto, preparado para mergulhar em uma estrada em que o fim não pode ser vislumbrado, mas que está em algum lugar lá na frente, implacável, inevitável, ameaçador e assustador, só nos esperando chegar. E não há sequer a escolha de olhar para o lado, de se distrair com outra coisa ou mesmo de parar de ler, pois há uma força atrativa no que King escreve que faz o leitor seguir adiante mesmo quando tudo o que ele quer é pensar em outra coisa, qualquer outra coisa.
Como um jovem nem com 20 anos direito escreve algo assim, eu realmente não sei, mas foi impressionante vivenciar a experiência de uma leitura em que o leitor acaba sendo obrigado a agir como os protagonistas da história agem em sua longa marcha à pé por uma distopia nos EUA: uma vez iniciada a jornada, parar não é uma opção. E não estou sendo exageradamente dramático não, pelo menos não acho que esteja sendo. King constrói um mundo muito parecido com o nosso, com diferenças pontuadas muito raramente aqui e ali para além da marcha em si, com uma premissa que subverte as narrativas que determinam que apenas um competidor pode sobreviver ao final, pois, aqui, os 100 participantes – todos meninos adolescentes de no máximo 18 anos – não foram obrigados a participar de nada, seja por ordens de um Estado autoritário (como Battle Royale ou Jogos Vorazes) ou por suas circunstâncias socioeconômicas (como em O Concorrente, outro livro que King lançaria sob seu pseudônimo Bachman). Eles escolheram participar, preenchendo formulários, fazendo provas escritas e testes físicos e tiveram não uma, mas duas oportunidades para desistir de seguir na marcha depois de terem sido aprovados. Mas, uma vez na marcha, a regra é clara: é necessário andar sem parar na velocidade mínima de 4 milhas por hora (6,4 km/h em sistema civilizado de medida) e a cada vez que essa velocidade não for alcançada, um aviso é emitido até o máximo de três avisos, com o quarto sendo o fuzilamento sumário (a cada hora sem aviso, um aviso obtido é eliminado).
Apesar de publicado quatro anos após o fim da Guerra do Vietnã, mas escrito enquanto ela ainda estava no auge, muitos concluem que o romance é uma alegoria crítica ao que estava acontecendo nos EUA na época, com o alistamento obrigatório, a juventude perdida lutando em um país distante por razões que ninguém entende, as mortes sem sentido de colegas ao seu redor e assim por diante, mas eu vejo de maneira ainda mais ampla e, talvez, pior. A Longa Marcha realmente parece inspirado pela geopolítica da época em geral e pelos efeitos dela diante dos jovens nos Estados Unidos entre os anos 60 e 70, mas, mais do que uma alegoria, o romance encapsula o estado de espírito coletivo de uma nação, com uma visão que não consegue enxergar futuro a ponto de ser preferível a morte prematura, morte essa que ganha um verniz “romântico”, talvez até heroico e aventureiro, ao acontecer na forma de uma suposta competição de resistência televisionada por todo o país, um momento de glória na ausência de esperança.
Com uma narrativa em terceira pessoa, que, porém, usa o ponto de vista do jovem Ray Garraty, o caminhante #47, como principal, King nos apresenta aos personagens já na marcha, sem recorrer à estrutura mais comum que é vermos cada um dos personagens principais em sua vida antes de tudo começar. É na caminhada que conhecemos Garraty e seus parceiros mais imediatos, seu aliado mais resoluto Pete McVries, o caminhante #61, o “terceiro mosqueteiro” Art Baker, o caminhante #3 e o misterioso e aparentemente invencível Stebbins, o caminhante #88, que fica constantemente no final de todo o grupo. Apesar de cada personalidade ser muito bem trabalhada, o importante mesmo é compreender que, no conjunto, esses e outros personagens representam um recorte da sociedade dos EUA na época, cada um encarando a marcha de sua forma, mas nenhum deles – e é daí que vem a agonia na leitura – conseguindo realmente explicar o porquê de estar lá, o que apenas reitera essa questão do “consciente coletivo” que mencionei mais acima. A individualização dos personagens é muito mais importante para tornar a leitura palatável do que em reais termos narrativos, pois King lida com uma massa de personagens que, no momento em que começam a caminhar, passam a ser mortos vivos guiados por uma vontade que o autor propositalmente deixa vaga, nas entrelinhas, deixando o leitor chegar às conclusões, algo que vale também para o maravilhosamente ambíguo final que, por razões óbvias, não abordarei aqui.
O Stephen King de nosso universo, aquele que publicou Carrie, a Estranha e outros antes de seu alter ego publicar A Longa Marcha, tornou-se muito rapidamente o Mestre do Horror na literatura, quase que sempre ligado ao horror sobrenatural e/ou paranormal, e seu sucesso contínuo é incontestável a ponto de ele e suas obras – dezenas delas adaptadas para o audiovisual como séries e filmes – terem se tornado parte indelével do imaginário popular ocidental. Mas algo me diz que o Stephen King de outro universo que imaginei quando cheguei ao fim de A Longa Marcha teria sido capaz de ter uma bibliografia ainda mais potente e relevante, mesmo que menor e certamente menos famosa. No final das contas, porém, nessa longa e constante caminhada de décadas, King mostrou-se incansável e, diferente dos jovens perdidos de seu romance assustadoramente pessimista, sabendo muito bem a razão de ter escolhido fazer o que faz até hoje sem nenhum sinal de diminuir a velocidade.
A Longa Marcha (The Long Walk – EUA, 1979)
Autoria: Stephen King (sob o pseudônimo Richard Bachman)
Editora original: Signet Books
Data original de publicação: 03 de julho de 1979
Editora no Brasil: Editora Suma
Data de publicação no Brasil: 13 de janeiro de 2023
Tradução: Regiane Winarski
Páginas: 314
