Desde que o geógrafo grego Estrabão recontou e registrou pela primeira vez, entre o ano 7 a.C. e 23 d.C., a existência da história de Rodópis, uma jovem grega escravizada que acaba se casando com o faraó do Egito depois que ele fica emocionado com uma sandália que lhe cai no colo vindo de uma águia em sobrevoo, imediatamente mandando seus homens acharem a jovem que a calçava, Cinderela tem estado intensamente presente no imaginário popular do mundo todo, seja Ocidente ou Oriente, nas mais diferentes formas, ganhando a versão mais conhecida por nós na Idade Média e, claro, a inesquecível adaptação cinematográfica da Disney, de 1950. A cineasta norueguesa Emilie Blichfeldt estreia no roteiro e direção de longas com uma interessantíssima versão da famosa história contada a partir do ponto de vista de Elvira, uma das meias-irmãs feias de Cinderela, na forma de uma potente sátira com elementos de horror corporal que carrega consigo mensagens muito atuais sobre o ideal de beleza e tudo o que é feito por ele.
Óbvios e pertinentes paralelos podem ser traçados com o recente e excelente Substância, mas enquanto o longa estrelado por Demi Moore falava da tentativa de recomposição da beleza perdida com a idade, A Meia-Irmã Feia aborda algo que considero muito pior e que assola a sociedade moderna, apesar de não ser exatamente novidade: a sedução do inocente de forma que ele se enquadre desde cedo nos inalcançáveis padrões de beleza exigidos pela sociedade, algo que óbvia e infelizmente acontece mais pela pressão em cima de meninas e jovens mulheres, pressão essa que pode vir de todos os lados, mas que ganha contornos ainda mais aterradores quando vêm dos pais e por razões tão frívolas quanto a ascensão social. São indústrias inteiras – cosméticas, farmacêuticas, cirúrgicas, alimentícias e outras – que investem muito nesse lado, com o entretenimento pop, aí incluído o audiovisual, a música, a televisão e, de maneira insidiosa, as redes sociais, estabelecendo o que está nos conformes e o que não está e criando uma mentalidade que pode destruir a vida de muita gente.
Claro que não falo, aqui, de questões genuinamente médicas, mas sim de alterações no corpo almejadas única e exclusivamente por razões de pressão social e é isso que Blichfeldt aborda em seu filme ao inteligentemente escalar não uma atriz que poderia ser mais facilmente chamada de “feia”, “obesa” ou coisas assim. Muito ao contrário, Lea Myren, que vive Elvira, a filha mais velha de Rebekka (Ane Dahl Torp), viúva que se casa com o pai de Agnes (Thea Sofie Loch Næss) achando que, por ele morar em um castelo, tem muito dinheiro, é uma menina bonita que só é trabalhada visualmente para parecer “menos ideal”, com cabelos que não lhe caem bem, costas arqueadas e o leve uso de próteses para alterar o formado de seu nariz, dar-lhe uma pequena papada e um pouco mais de barriga, nada exatamente chamativo ou transformador sob o ponto de vista negativo. Na verdade, os grandes truques da diretora para que o espectador considere Elvira feia é, primeiro a baixa autoestima da personagem e, segundo, o contraste com a beleza ideal representada por Agnes (a Cinderela do filme que é chamada pelo apelido apenas uma vez e de maneira completamente desnecessária), que está sempre linda e iluminada mesmo quando chora pela morte do pai ou se veste como uma serviçal para ordenhar uma vaca.
E é a comparação que mata, é a comparação que cria aquele desespero pernicioso em Elvira e em tantas jovens em nosso mundo moderno, algo que, lógico, é amplificado pela convocação de todas as jovens do reino pela corte do Príncipe Julian (Isac Calmroth) para um baile dentro de quatro meses, levando Rebekka a forçar sua filha a “ficar bonita”, algo que começa quase que imediatamente com a retirada do aparelho ortodôntico que Elvira usa (sim, está correto, pois ele foi inventado no século XVIII) e com uma rinoplastia na base de martelo e formão, mas sem anestesia, o que leva a jovem a usar uma “guarda nasal” por meses. O horror corporal está na premissa do longa, pois já é um horror imaginar mudar o corpo porque ele não está de acordo com o que “as pessoas” exigem, mas sempre galgado por um surpreendente realismo. Em outras palavras, Blichfeldt recorre a intervenções cirúrgicas da época, além de um “medicamento” que realmente era usado, para fazer horror corporal, inclusive sem recorrer a exageros de sanguinolência, pus e outros elementos que normalmente acompanham esse subgênero.
Lea Myren acerta no tom de sua sofrida personagem, primeiro convencendo o espectador de seu verdadeiro amor pelo Príncipe Julian – ela é a única jovem no filme inteiro que realmente gosta dele e não por ambição de ficar rica, ser princesas e coisas do gênero – e, depois, atravessando seu périplo de horrores com um orgulho doloroso, como se ela estivesse apenas suplantando obstáculos para alcançar seu objetivo de vida, objetivo esse que nada mais é do que casar com um homem que, em determinada altura, diz que já transou com todo mundo em seu castelo e, olhando para Elvira de nariz de metal, diz que jamais transaria com ela, em um momento didático, mas destruidor para a jovem que mesmo assim não desiste. A subversão da versão mais conhecida da história clássica é evidente, pois a produção nos faz sofrer não por Cinderela – que não é flor que se cheire -, mas sim por Elvira e, de tabela, por sua irmã menor Alma (Flo Fagerli), esta a única pessoa verdadeiramente centrada de toda a película. Ane Dahl Torp, por seu turno, constrói sua personagem não como a madrasta má da história, mas sim como a mãe má, com sua maldade, porém, não sendo mais do que seguir o que obviamente é necessário para que sua filha enlace o príncipe e tire-a da penúria que a obriga a vender seu corpo por favores.
A direção de fotografia do dinamarquês Marcel Zyskind é um primor ao fazer de tudo para usar iluminação natural do sol, de velas e de lareiras, inclusive nas tomadas interiores, tarefa extremamente complexa por si só, que, combinada com a direção de arte e figurinos, constrói uma opressiva atmosfera barroca que conversa muito bem com o drama de Elvira, algo que a trilha sonora composta por John Erik Kaada e Vilde Tuv, que funde notas típicas da época com elementos modernos, ajuda a estabelecer e a pontuar, sem nunca realmente parecer uma intrusa na história. E essa é, repito, uma história sobre uma jovem que viveu a vida toda achando-se feia e que é obrigada a perseguir um ideal de beleza impossível, passando por verdadeiras torturas cirúrgicas para alcançá-lo, ou seja, é um drama com elementos fortes de sátira e de horror corporal e não exatamente um filme terror no sentido que normalmente se espera por aí. É, mais de dois mil anos depois, Cinderela nunca foi tão atual.
Obs: Há uma cena após os créditos.
A Meia-Irmã Feia (Den Stygge Stesøsteren – Noruega/Dinamarca/Romênia/Polônia/Suécia, 2025)
Direção: Emilie Blichfeldt
Roteiro: Emilie Blichfeldt
Elenco: Lea Myren, Ane Dahl Torp, Thea Sofie Loch Næss, Flo Fagerli, Isac Calmroth, Malte Myrenberg Gårdinger, Ralph Carlsson, Cecilia Forss, Katarzyna Herman, Adam Lundgren, Willy Ramnek Petri, Kyrre Hellum, Oksana Czerkasyna, Richard Forsgren, Agnieszka Żulewska
Duração: 109 min.