Pode ser que alguns concluam que A Noite Sempre Chega, segundo longa de Benjamin Caron, diretor egresso da televisão, espetaculariza a miséria ao transformar em thriller no estilo hollywoodiano a história de uma mulher que, para não perder a casa onde mora com a mãe e o irmão mais velho com síndrome de Down, precisa conseguir 25 mil dólares em uma noite, mas essa é uma visão que diria ser injusta e reducionista do filme. Ele tem alguns problemas que abordarei mais à frente, mas esse não é um deles, especialmente porque essa forma de exploração da pobreza não é nenhuma novidade, algo feito basicamente desde sempre na Sétima Arte e, no mínimo dos mínimos, funciona como uma maneira de se conscientizar a população geral para um problema que, por mais que queiramos não ver, está aí, ao nosso redor. Além disso, o longa usa essa estrutura como base para uma jornada de autoconhecimento da protagonista e esse é o aspecto mais relevante da obra.
Vanessa Kirby vive Lynette, mulher que precisa equilibrar dois empregos e suas obrigações especialmente com o irmão Kenny (Zack Gottsagen), e que está à beira de finalmente dar entrada em um empréstimo para comprar a casa onde eles moram. No entanto, em razão de seu passado nebuloso, ela não tem crédito e precisa da aquiescência e assinatura de sua mãe, Doreen (Jennifer Jason Leigh), além do cheque no valor citado que, desnecessário dizer, mas já dizendo, nunca aparece. Com um ultimato do vendedor que determina que ela precisa conseguir o dinheiro até a manhã do dia seguinte ou ele aceitará a proposta de outro comprador, o que significa que ela e sua família ficariam sem teto, ela entra em desespero e passa a fazer de tudo para obter a quantia, o que a leva em uma jornada sombria que a faz reavaliar e enfrentar seu passado.
É nesse conflito interno que o filme finca suas bases e não exatamente nas ações de Lynette ao longo da projeção que, claro, são trabalhadas de maneira a criar tensão, levando a momentos cada vez menos verossímeis, mas que, no fundo, não escapam tanto assim do que se poderia esperar de uma obra com essa estrutura. E, com foco nessa revisitação do passado doloroso da protagonista, é que Kirby brilha com uma atuação nuançada, carregando no olhar o peso de tudo o que Lynette precisou passar em sua vida, tanto as escolhas impingidas a ela quanto suas próprias escolhas. O tormento de uma mulher próxima de alcançar um importantíssimo objetivo de vida que tem esse objetivo arrancado dela em um estalar de dedos é um estopim poderoso e o que vem a seguir precisa ser encarado muito mais como um reexame de uma vida difícil e a expiação de pecados passados mesmo que novos pecados sejam cometidos no processo. Ao lado dela por boa parte do filme, temos o trabalho também excelente de Gottsagen, funcionando com um constante lembrete do que Lynette tem a perder, além da presença mínima – só no começo e no fim do filme -, mas não menos marcante de Jennifer Jason Leigh.
Apesar de Caron saber o tipo de filme que está fazendo, ele também tem plena consciência de que a chave para tudo funcionar é Kirby e, por isso, entrega o filme para a atriz que funciona muito bem sempre, carregando a obra de um peso dramático que não se vê constantemente por aí. Para conseguir isso, Caron faz todo o esforço possível para manter as câmeras intensamente em Kirby, mas sem close ups dramáticos, algo que a sóbria direção de fotografia de Damián García faz com maestria, sem se render à pegada “tremida” de falso documentário que volta e meia tentam fazer. Além disso, García fotografa a noite com uma beleza urgente cheia de reflexos e de luzes efêmeras, mantendo as cores emudecidas, mas sempre presentes e sem jamais deixar com que as sombras engulam a narrativa, construindo uma atmosfera que, por vezes, lembra Depois de Horas, de Martin Scorsese ou Colateral, de Michael Mann. Afinal, não podemos esquecer que o pano de fundo da miséria de uma cidade sem nome dos EUA é vital para o filme e García precisa mostrá-la.
O problema central do longa repousa na incongruência da mensagem. No começo, por meio de uma montagem de telejornais, o longa faz um esforço valioso e genuíno de afirmar que os problemas do empobrecimento de grande parte da população americana vem de um sistema econômico e financeiro cruel, que cada vez mais permite a concentração das riquezas nas mãos de poucos, deixando o restante desguarnecido e desprotegido. Criado esse pano de fundo socioeconômico, o roteiro de Sarah Conradt vai aos poucos caminhando na direção oposta, consistentemente dando mais peso às decisões que assombram o passado de Lynette. Ainda que a culpa do sistema não seja eliminada, ela é esquecida e nunca mais realmente retorna para a película para além do preâmbulo que promete algo que nunca efetivamente é materializado. Além disso, algumas escolhas me pareceram no mínimo estranhas, para não dizer preconceituosas, algo mais facilmente detectável ao fazer do único personagem negro, Cody, vivido por Stephan James, o único ex-presidiário e. também. o único inicialmente capaz de levar Lynnete aos contatos que ela precisa no submundo. E, claro, há a simbologia das tatuagens que inexistem na Lynette diurna, mas, quando aparecem na Lynette noturna, são o primeiro sinal mais direto de que a personagem tem um passado problemático.
Vanessa Kirby segura o filme, porém, ajudada por Zack Gottsagen e, no pouco que aparece, por Jennifer Jason Leigh, o que é, francamente, suficiente para tornar o longa apreciável, especialmente em razão de um final corajoso, que muitos provavelmente considerarão anticlimático, mas que é justamente o que a história pedia. Some-se a isso a boa direção de Caron e a fotografia de Damián, e os pecados do roteiro e das escolhas estranhas da produção que citei acima podem ser amenizados para que a jornada de redescoberta de Lynette possa ser apreciada e processada.
A Noite Sempre Chega (Night Always Comes – EUA, 15 de agosto 2025)
Direção: Benjamin Caron
Roteiro: Sarah Conradt (baseado em romance de Willy Vlautin)
Elenco: Vanessa Kirby, Jennifer Jason Leigh, Zack Gottsagen, Stephan James, Randall Park, Julia Fox, Michael Kelly, Eli Roth
Duração: 108 min.