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Crítica | A Palavra (1955)

Filme-monólogo sobre o poder afirmativo da fé.

por César Barzine
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Carl Theodor Dreyer tinha o sonho de fazer um filme sobre Jesus Cristo. Muitos dizem que ele morreu sem tê-lo feito, mas pode-se dizer que ele realizou tal desejo, porém de outra maneira. Sendo a figura de Jesus marcada pelo martírio e pela ressurreição, o sacrifício e o milagre, é possível colocar que a sonhada obra já está em A Paixão de Joana D’arc e A Palavra. No primeiro, uma mulher é julgada, condenada e morta em nome de sua fé e, com isso, alcança a transcendência. No segundo, simplesmente ocorre o milagre que renova a fé de todos em volta.

A Palavra é uma mensagem, algo estático e centralizado. Tudo neste filme e em sua visão de mundo já está determinado, não há a possibilidade e nem a expectativa de desvios. Todas as partes estão em função de um ideal, e elas são apenas estágios necessários de um caminho já estabelecido. Esse grande ideal é o milagre, ou a manifestação divina. Quando a filha pequena de Inger diz que seria bom que sua mãe morresse para que, assim, ela ressuscitasse, há uma nítida implicação dessa teleologia. É preciso que a pior coisa possível aconteça para que, assim sendo, ocorra algo maior. 

O milagre, além de ser essa reviravolta, é um grande problema do filme. Entre os personagens, há quem diga que eles são impossíveis, quem ache que eles são algo distante (coisa presente apenas até o tempo de Jesus) e os que se apoiam com convicção na forte presença e possibilidade deles entre nós. O milagre é posto como a grande expressão de Deus na terra, sua forma de comunicação conosco. Na ocorrência deles, a fé em Deus é restaurada ou revigorada. Até lá, sob o silêncio de Deus, a religiosidade passa por uma série de crises.

O roteiro emprega um olhar microcósmico e múltiplo sobre a religiosidade naquele curto recorte geográfico. É colocada as mais diversas formas de expressões da fé: de um lado, o dogmatismo, a loucura, a descrença, o comodismo; já do outro lado, a fé ideal é encarnada pela pureza, lucidez e devoção de Inger. Dreyer apresenta um embate bem frontal e assertivo quando Morten compara a sua fé com a de Peter: a do primeiro é vivificante, e a do segundo é deprimente. O sectarismo de Peter o impede de aceitar um dos filhos de Morten como genro. Somos apresentados a uma versão do cristianismo que se recolhe da vida, sempre a vendo por um olhar cinzento. Já Morten posiciona a sua fé como afirmação da vida; o que se revela como uma inclinação em processo de autorrealização e que termina de se efetivar no final.

Até lá, vamos acompanhando uma obra de estética teatral, do estilo rígido já encontrado nos outros trabalhos sonoros de Dreyer. Boa parte do filme acontece na casa da família Morten, e os demais cenários/locações são poucos. Os planos são bem longos, com isso, o uso de panorâmicas é feito a todo momento. Assim, vemos sem cortes o andar dos personagens e a exploração da casa com sua passagem por vários cômodos de maneira rigorosa e movimentada ao mesmo tempo.

Outra forte característica teatral é a presença frontal dos atores. Eles não dialogam olhando um para o outro, mas sim com o rosto virado para frente, como se fosse para uma hipotética plateia. Em planos gerais, a palavra é dirigida ao personagem ao lado (que fixa sua face para ele), contudo, o olhar é exclusivo ao público. Essa conexão com o espectador imprime um pequeno sinal de opacidade em A Palavra, cuja forma se autoevidencia como filme, pois o seu conteúdo se escancara como mensagem fechada dentro de um sistema determinado. 

O tom carregado das interpretações — típico do teatro e perfeito para a postura dos atores — faz com que os diálogos pareçam monólogos, e é mais ou menos isso que o filme é mesmo: um grande monólogo. Ou seja, é algo concentrado, que pouco se alterna, enfático e com um objetivo certo. A mesma coisa do filme-mensagem explanado até aqui. O título da obra já entrega tudo: a palavra — o verbo/logos a ser encaminhado. E se Cristo é o verbo em carne, A Palavra é como se fosse o verbo em imagens, tamanho o peso de sua proposta.

A transparência e a ênfase são outros dois aspectos dessa objetivação do verbo. É desse modo que coisas simples são desnudadas, e as vemos nas singelas palavras que escancaram a fé de Inger, Mahen e Johannes. (Para Manoel de Oliveira, Dreyer teve a precursora ‘‘força de filmar a palavra’’.) Eles acreditam na presença divina para além do superficial e deixam isso bem claro, principalmente esta última. A franqueza de Igen ao explicitar suas crenças vem acompanhada da mais pura serenidade e ternura. A clareza é tida como uma forma de otimismo e que aqui combate o cinismo. 

A Palavra, Dreyer e o cinema escandinavo em geral possuem como marca um aspecto pesado, sombrio e decaído (tanto na forma quanto nas histórias), no entanto, existe um inegável otimismo nesse longa-metragem, algo, para além do edificante, também radiante. A pureza da fé (mais do que sua força em si) atesta isto, porém esse tom também se imprime na mise-en-scène: a direção de arte capricha na decoração em partes da casa da família Morten, expondo objetos diversos como tabuleiro de xadrez, relógio etc., que dão vida ao ambiente e o diferenciam da cinzenta casa de Peter.

Ao tratar das causas da loucura de Johannes, Mikkael aponta para a influência do pai do existencialismo Kierkegaard. A referência é bastante cabível, tanto para a figura de Johannes quanto para todos os personagens e o filme em si. Kierkegaard, por meio do “salto de fé’’, prega uma espiritualidade radical com um nível de transformação íntima avassalador. É isso que faz com que Johannes pense ser Jesus. Ele é a fé exacerbada, enquanto Mikkael representa a fé em falta. O equilíbrio entre tudo isso está na crença profunda, mas estável, de Inger. A autorrealização dos dois extremos foi se nivelar à sua condição. Milagres protagonizam essa mudança, compondo a concretização de dois telos: a manifestação divina e a transformação pela fé. 

A Palavra (Ordet) — Dinamarca, 1955
Direção: Carl Theodor Dreyer
Roteiro: Carl Theodor Dreyer, Kaj Munk (peça)
Elenco: Henrik Malberg, Preben Lerdorff Centeio, Birgitte Federspiel, Ejner Federspiel, Emil Hass Christensen
Duração: 126 minutos.

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