Um verdadeiro docudrama, ou seja, um filme que caminha na exata linha tênue entre ficção e documentário, é consideravelmente raro de se achar por aí, especialmente os de altíssima qualidade produzidos para serem exibidos no Cinema. A Voz de Hind Rajab, da cineasta tunisiana Kaouther Ben Hania, responsável por As 4 Filhas de Olfa, é um exemplar desse estilo relativamente pouco tentado, em uma ambientação de momento absolutamente cativante, angustiante e emocionante que faz o espectador acompanhar a organização do resgate de uma menina de cinco anos sozinha, com toda sua família morta ao redor, em um carro em plena zona de guerra em Gaza, em janeiro de 2024, exclusivamente sob o ponto de vista dos voluntários da Crescente Vermelha, na Cisjordânia, que atendem ligações de emergência. Mesmo que o espectador eventualmente saiba do destino da criança – que não revelarei aqui – o longa de Ben Hania é uma experiência audiovisual destruidora, que, como poucas obras, suga as energias de quem o assiste, tendo levado o Leão de Prata, o Grande Prêmio do Júri, no Festival de Veneza de 2025 e sendo escolhido como o representante da Tunísia para disputar uma vaga ao Oscar de Melhor Filme Internacional.
O que a diretora inteligentemente fez foi pegar as gravações de voz reais das ligações com a pequena Hind Rajab e usá-las em seu filme, com o restante sendo a reencenação das horas entre a primeira ligação recebida pelo atendente da Crescente Vermelha, ligação essa vinda da Alemanha, do tio da menina, até o final. Um grupo de atores deu vida aos voluntários reais, com interações perfeitamente integradas com a Hind Rajab verdadeira das gravações, criando uma atmosfera claustrofóbica – por ser uma obra toda em ambiente único – intensa, tensa e desesperadora a cada minuto que passa, com o pequeno elenco convencendo desde os primeiros segundos em que Omar (Motaz Malhees) fica paralisado, sem ação, ao ouvir os horrores do outro lado da linha. É Omar que serve de fio condutor principal, por ele se recusar a aceitar a burocracia necessária para conseguir com que a ambulância de resgate, que está a apenas oito minutos de distância, possa seguir seu trajeto de maneira segura, enfrentando diversas vezes seu chefe Mahdi (Amer Hlehel) que, em sua compreensível perturbação, ele injustamente acusa de fazer muito pouco na coordenação com a Cruz Vermelha e demais órgãos que negociam o salvo conduto de veículos em zonas de guerra.
De maneira semelhante, Rana (Saja Kilani), atendente que estava prestes a finalmente ir para casa, mas que é tragada para a situação impossível de Hind Rajab, consegue estabelecer uma conexão mais ampla com a menina, mantendo-a falando na linha por muito tempo, mas, com isso, sofrendo tremendamente pela sensação de completa impotência, o que exige a intervenção da assistente social mais experiente Nisreen (Clara Khoury), que consegue manter um semblante de calma por mais tempo. A distribuição de tempo entre cada um dos quatro atores principais é cirúrgica, com cada um cumprindo seu “tipo de papel” à perfeição, com a voz de Hind Rajab servindo de elo narrativo que mesmo quando não é ouvida, está presente o tempo todo, ao mesmo tempo criando lampejos de esperança e de raiva pelo que ela tem que ver e sentir. Se os atendentes se sentem perdidos e impotentes, os espectadores então, já “distantes” temporalmente do fato, só têm a opção de observar em silêncio sepulcral.
Ben Hania acerta até mesmo na forma como ela lida com o drama dos atendentes, pois o foco exclusivo nas conversas com a menina tenderia a tornar o longa árido e potencialmente cansativo. Esses momentos mais dramáticos – um desmaio aqui, brigas ali, momentos de respiro na sacada do escritório – não parecem tão intrusivos como eles poderiam ser por eles parecerem naturais e lógicos dentro do encadeamento dos eventos, mesmo que isso possa ser interpretado como uma tentativa da cineasta de criar melodrama. Tenho para mim, porém, que o elenco está tão bem entrosado e investido em seu trabalho que as “pausas melodramáticas”, por assim dizer, não desviam para além do razoável o foco da narrativa central, mantendo a voz de Hind Rajab quase que como uma assombração que finca os pés de todos ali e também na sala de cinema em terra firme. Além disso, Ben Hania faz um excelente esforço para criar variedade visual, por vezes usando as vozes reais dos atendentes com os atores apenas reagindo em uma espécie de segundo plano desfocado, ou fundindo completamente a realidade com a ficção quando uma filmagem de vídeo dos atendentes reais é usada como instrumento de reconfirmação do trabalho de encenação do elenco.
A voz da garotinha pedindo ajuda, querendo companhia e voltar para o abraço de sua mãe é torturante e aterradora, mas ela é, também, uma espécie de hino antibelicista que precisa ser ouvido. Kaouther Ben Hania, com seu A Voz de Hind Rajab, cumpre seu difícil papel de divulgar esse apelo para o maior público possível, na esperança de que a Humanidade perceba o quão desumana ela pode ser. Ficção e realidade falam com uma só voz aqui, e essa voz é a de uma criança de cinco anos em uma guerra que ela sequer entende.
A Voz de Hind Rajab (صوت هند رجب / Sawt Hind Rajab – Tunísia/França/EUA, 2025)
Direção: Kaouther Ben Hania
Roteiro: Kaouther Ben Hania
Elenco: Saja Kilani, Clara Khoury, Motaz Malhees, Amer Hlehel
Duração: 89 min.