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Crítica | Amém

por Marcelo Sobrinho
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“Onde há poder, há resistência” – Michel Foucault.

Sempre me interessei bastante por filmes envolvendo o Holocausto e a Segunda Guerra Mundial que abordassem pautas e histórias pouco convencionais. Possivelmente porque o tema é um dos mais desgastados da história do cinema, é verdade, mas também porque essas questões supostamente marginais sempre enriquecem o olhar para esse período histórico. O caso dos falsários de Sachsenhausen e o massacre vil dos prisioneiros de Katyn pelos soviéticos são dois bons exemplos de histórias menos conhecidas e que geraram bons filmes. Já uma questão importante, mas que nunca ganhara de fato os holofotes do grande público, é a da permissividade da Igreja Católica com relação ao horror do nazismo. Na grande tela, esse tabu só foi quebrado em 2002 por um dos grandes mestres do cinema de denúncia em toda a história da sétima arte – o grego Constatin Costa-Gavras, com seu polêmico e competente Amém.

Toda a experiência que Costa-Gavras acumulara em sua carreira como cineasta político, em filmes como Z, O Desaparecido e Estado de Sítio, o credenciaram como um nome perfeito para desengavetar o projeto de transpor a peça teatral O Vigário, de Rolf Hochhuth, para o cinema quase quarenta anos após o lançamento da obra original. Amém conta a história de um padre jesuíta diretamente ligado ao Papa Pio XII e de um oficial nazista e químico, criador do zyklon B como purificador da água dos soldados alemães, que se unem para denunciar à Igreja o terror genocida dos campos de concentração. O filme de 2002 pode não ter toda a inspiração dramatúrgica ou até as doses de sarcasmo dos maiores clássicos do diretor, mas Amém é poderoso na medida em que conta uma história tão aterradora em tensão crescente. Não temos um thriller político dessa vez, mas um drama sério e tratado com a gravidade necessária.

O roteiro é contundente mas não peca por falta de complexidade. Trabalha com dualidades todo o tempo, o que evita a simplificação de uma geopolítica tão intricada como a dos tempos da Segunda Grande Guerra. Isso está presente no próprio retrato da Igreja Católica, que, no começo do filme, demonstra sua força e sua influência no combate ao extermínio de crianças deficientes mentais. Logo após, segue-se o silêncio com relação à situação dos judeus na Europa em um paradoxo apenas aparente. Além disso, parte de um oficial nazista e de um jovem padre a denúncia da barbárie nazi-fascista – atestando que sempre houve pessoas que se opuseram a ela dentro da própria Igreja e do próprio Reich, isto é, que o senso de humanidade sobreviveu mesmo no terreno mais desértico. Essa complexidade desorganiza a dicotomia que propusera que os Aliados foram os únicos responsáveis por libertar a Europa das garras nazistas.

Ainda mais interessante em Amém é a própria direção de Costa-Gavras, que me parece defender uma tese central bastante clara e que localiza o mal nos andares mais altos do poder. Note-se como o diretor grego escolhe numerosos close-ups para evidenciar o surgimento da consciência humana nos protagonistas. É o que ele faz, por exemplo, na cena em que Gerstein assiste a execução de judeus em uma câmara de gás através de sua própria invenção. Costa-Gavras não mostra a agonia dos prisioneiros, pois lhe interessa muito mais o olhar silencioso, consciente e atormentado do oficial nazista. Por outro lado, praticamente todas as cenas envolvendo o papa e os altos cardeais da Igreja são registradas em planos de conjunto, mantendo o formalismo e o distanciamento que sufocam a sua humanidade e os tratam como engrenagens superiores de uma instituição comprometida consigo mesma. A câmera do cineasta grego é muito clara – a consciência humana jamais viceja onde é esmagada pela macrofísica do poder.

Por isso Amém se torna um filme tão possante sobre o tema da omissão da Igreja Católica em um dos momentos mais negros da história humana. Costa-Gavras reafirma a inacessibilidade de um sistema comprometido com muitas questões complexas e que relega o elemento humano para uma posição absolutamente secundária. Todas as tentativas que o oficial Kurt Gerstein e o padre Riccardo Fontana empreendem para denunciar o Holocausto não frustram o espectador pela vilania dos homens que se omitem, mas pela indesculpável burocracia que torna um sistema criado por homens inacessível a eles mesmos. A tensão criada pelo roteiro, pela direção e pelas excelentes atuações dos dois protagonistas cresce sem que o filme sequer necessite de um grande clímax. Na medida em que as possibilidades de sucesso dos dois homens se esgotam, o próprio público acaba se vendo diante da encalacrada. Angustia-se e sente realmente o peso da questão sem que nenhum personagem precise se passar como um herói fácil.

O final de Amém também não é dado a grandes surpresas ou emoções. Trata-se de uma história com inspiração real e que não poderia mesmo almejar grandes saltos dramatúrgicos em seu desfecho. Mas, nem por isso, ele se torna morno ou insosso. Engana-se quem pensa que tudo termina em tom de desalento ou derrotismo. Costa-Gavras sabe inserir uma dose de esperança mesmo quando denuncia as maiores perversidades. Os relatórios de Gerstein, ainda que não tenham servido para salvar a vida de milhões de pessoas, tornaram-se tantos anos depois uma comprovação documental do Holocausto. Se a história humana é mesmo a história da barbárie, fatalmente a barbárie se repete. Só é possível evitá-la conhecendo como ela opera e como ela se esconde nos interstícios do poder. Amém entrega uma análise competente sobre tudo isso, ainda que emocione pouco. Em tempos como o nosso, em que cresce um revisionismo histórico tão periclitante, registros como os de Gerstein e filmes como o de Costa-Gavras assumem valor inestimável.

Amém (Amen – França, 2002)
Diretor: Constatin Costa-Gavras
Roteiro: Costantin Costa-Gavras e Jean-Claude Grumberg
Elenco: Mathieu Kassovitz, Ulrich Tukur, Ulrich Mühe, Marcel Iures, Sebastian Koch, Antje Schmidt.
Duração: 135 minutos

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