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Crítica | Batem à Porta

Sobre fantasia, crenças e sacrifícios.

por Frederico Franco
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SPOILERS!

Batem à porta começa sem muito rodeio: Wen, menina por volta dos 8 anos, caça gafanhotos em uma mata quando, subitamente, é interpelada por um enorme homem chamado Leonard, que diz querer ser seu amigo. O diálogo começa de modo comum, filmado em planos e contraplanos da maneira mais clássica possível. Adiante na conversa, períodos de silêncio são notados – há algo de estranho que perturba Leonard, tirando o sorriso de seu rosto. Wen percebe que alguma coisa não parece certa. Há tensão no ar, fazendo com que o planos e contraplanos já não sejam tão ajustados quanto antes: os atores praticamente estão no limiar entre o raccord de olhar e a quebra da quarta parede. Os dois personagens não estão confortáveis. E muito por causa da direção de Shyamalan, que faz a lente da câmera praticamente engolir os atores. Some o classicismo e entram dutch angles que deixam mais claro que algo de ruim está por vir. Ao fundo, vê-se mais três adultos andando em direção à menina e Leonard. A tensão sobe até tal ponto que Wen corre em direção a sua cabana em busca de seus pais, Eric e Andrew. Os outros quatro adultos, agora, tentam invadir o chalé do casal. Em um primeiro momento, prezam pelo diálogo; depois, inevitavelmente, entram a fórceps. É desse modo intenso que M. Night Shyamalan nos joga enquanto espectadores para dentro de seu microcosmos particular. Não sabemos nada de ninguém e muito menos seus supostos motivos para estarem em cena.

Quem são esses invasores? Bom, ao menos temos seus nomes: Leonard (já apresentado anteriormente), Redmond, Sabrina e Adriane. Com a casa devidamente tomada, a aparente agressividade dos visitantes é interrompida: os quatro adotam para si uma postura calma, mais próxima de uma certa fragilidade diante da situação. Depois de muitos debates, os invasores anunciam que Eric, Andrew e Wen deverão escolher, entre eles, uma pessoa a ser sacrificada para impedir o apocalipse de acontecer. Aqui, há um curioso senso de ironia: os invasores, antes vistos como donos da situação, se vêem como reféns da família; não cabe a eles tomar decisões, mas sim aceitar aquilo que a família opta por fazer. A cada negativa dada por Eric, Andrew e Wen, um do grupo invasor será morto e pragas serão jogadas na humanidade. 

Talvez uma grande valência de Batem à porta seja essa manutenção do suspense inicial, estabelecido nos primeiros minutos e estendido até por volta de meia hora de filme. A busca por motivações explícitas dos invasores ou os porquês dessa família em específico ter sido escolhida para o sacrifício não é necessária – e nem ao menos é explorada por Shyamalan. A diegese construída pelo diretor parece voltada para os lados de um realismo mágico, na qual a introdução de elementos fantásticos é abraçada pelo público e pelos personagens. Um importante vértice do realismo fantástico na literatura é, justamente, o surgimento de fenômenos extraordinários não explicados – as coisas apenas acontecem, como no cotidiano. Ao beber dessa fonte, Shyamalan nivela o senso de realidade às interferências mágicas construídas em Batem à porta. Em dado momento do filme, os personagens pedem verbalmente, uma explicação, os motivos por aquilo estar acontecendo. Essas perguntas sobram, são feitas ao léu, não ganhando resposta ou sequer relevância. Tal movimento dramático soa quase como um escárnio, um deboche. Visto isso, é capaz de se afirmar que existe a possibilidade de nem mesmo o diretor ter tais respostas. Relembrando Beckett, que ao ser perguntado sobre quem é Godot, responde: “se eu soubesse, teria dito”. O início de Batem à porta é, antes de qualquer coisa, uma curtição de Shyamalan em um mundo pré-apocalíptico.

Adiante, é razoável perceber que o diretor também explora uma temática específica que se fez presente ao longo de sua carreira: fé versus ceticismo. A fé, trazida pelo quarteto que invade a cabana, é confrontada, majoritariamente, pelo personagem de Andrew, que se nega a acreditar no grupo até a última instância. Crença versus tautologia para utilizar vocábulos de Didi-Huberman. As tragédias trazidas pelo apocalipse são sempre interpretadas de modo diferente pelos protagonistas. O grupo de invasores, capitaneado por Leonard, atribui tudo à algo divino, religioso – o que é desmentido por Andrew – negando o acaso. Por outro lado, Andrew vê apenas a forma das coisas, fechando os olhos para significados escondidos. O debate, no entanto, parece se alongar mais do que deveria, criando uma espécie de trava na fluidez narrativa. O embate desenvolvido, aqui, parece atrapalhar a construção do universo fantástico antes citada. Se no começo do filme é a imersão em um mundo fantástico, mas ainda assim naturalista, que cria suspense, o desenvolvimento do debate fé contra razão soa como um entrave que acaba por se voltar especificamente para Andrew. Alongando essa temática até os últimos momentos de Batem à porta perde-se um pouco do encanto construído pelo pequeno universo de Shyamalan. 

Ao longo de seus cem minutos, Batem à porta propõe um debate ético a partir de sacrifícios. É plausível matar um familiar para, assim, salvar a humanidade? Ou vale mais salvar aquele que se ama em troca da alma de todo o mundo? O que pode ser lido dentro do drama de Shyamalan é que o amor, na verdade, é mantido através de sacrifícios constantes. Desde Lima Barreto a contos de folclore japonês, o amor é, muitas vezes, interpretado como uma forma de sacrifício. Em uma cena derradeira entre Eric e Andrew, o primeiro reflete sobre o tema, chegando à conclusão de que seu sacrifício é a melhor saída, já que daria à sua filha a chance de viver uma vida normal, sem reflexos apocalípticos. Em um trabalho impressionante de plano e contraplano – cabe aqui destacar a desenvoltura de Shyamalan nesse aspecto da decupagem – a câmera gira junto com os atores, que, juntos, parecem dançar uma última valsa. Eric, indo ao encontro da morte, está com o rosto encoberto pela sombra, tendo apenas uma luz de contorno em sua nuca; Andrew, com o rosto coberto de lágrimas, parece não querer desgrudar do marido. Os dois param, a câmera também. Uma última troca de olhares. O sacrifício foi feito. 

Mas não é só entre o casal que podemos notar essa vertente de pensamento. Cada um dos quatro invasores deixou para trás amores, vidas, vivências, para tentar impedir o apocalipse, por mais que isso lhes custasse a própria vida. Nas palavras de Hermann Hesse: “o amor não deve pedir nem tampouco exigir. Há de ter a força de chegar em si mesmo à certeza e então passa a ser atraído em vez de atrair”. Os amores de Leonard, Redmond, Sabrina e Adriane são vias de mão dupla, como fios condutores de uma eletricidade que será carregada até o pós-vida.

Por mais catártico e poético que esse trecho do terceiro ato seja, não se pode deixar passar uma opção de Shyamalan que quebra esse encanto capaz de deixar o espectador enfeitiçado. Entre uma sugestão de metáfora na qual os quatro visitantes representam os Quatro Cavaleiros do Apocalipse às avessas e um epílogo não muito empolgante, Batem à porta poderia terminar em um ápice dramático intenso, de tirar o fôlego, mas opta por uma zona de conforto narrativa.

Batem à porta (Knock at the Cabin) – EUA, 2023
Direção: M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan, Paul Tremblay, Michael Sherman, Steve Desmond
Elenco: Jonathan Groff, Ben Aldridge, Kristen Cui, Dave Bautista, Rupert Grint, Nikki Amuka-Bird, Abby Quinn, William Ragsdale
Duração: 100 min.

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