Surgido em The King’s Demons, Kamelion é um dos personagens mais curiosos de Doctor Who pelo total fracasso de sua concepção. Os problemas em torno do androide vieram desde dificuldades de inseri-lo nos roteiros, até problemas de produção envolvendo a funcionalidade do boneco mecânico nos sets. Muitos chamam Kamelion de O Companheiro que nunca foi, pois embora o robô, em tese, estivesse na TARDIS pela maior parte da 21ª Temporada da série, ele só apareceu em Planet of Fire, história onde o viu ser destruído. Ou seja, Kamelion foi um companion que teve só duas histórias, uma de introdução e outra de despedida. Logo, não há como não ver com curiosidade a decisão da Big Finish de dedicar uma série de arcos a Kamelion e seu tempo ao lado do 5º Doutor. Cavan Scott assume a primeira história, Devil In The Mist, que se comunica diretamente com as questões levantadas na estreia de Kamelion.
Na trama, situada entre os arcos The King’s Demons e The Five Doctors, a TARDIS se materializa a bordo de uma nave-prisão dos Harrigan, uma raça de hipopótamos alienígenas humanoides militarizados. A nave carrega um único prisioneiro, Nustanu, um perigoso assassino capaz de imitar vozes e se transformar em névoa. Quando uma falha no sistema de contenção permite que Nustanu escape, a nave sai de controle e cai no pior lugar possível, um planeta coberto por um nevoeiro. Enquanto um Doutor extremamente ferido precisa lidar com a tensão crescente entre os Harrigan com um assassino à solta, a Companion Tegan Jovenka se vê contando apenas com o robô Kamelion para sobreviver, sem saber se o androide será o seu salvador ou o seu carrasco.
Com Devil in The Mist, Scott entrega uma interessante história de sobrevivência, que embora tenha um começo fraco no primeiro capítulo pelo roteiro se entregar a algumas conveniências desnecessárias, cresce muito a partir do momento em que a nave cai no Planeta Rastana. No segundo episódio, a narrativa adquire um senso de urgência maior, com a tensão entre os personagens sendo trabalhada de forma engajante tanto pelas ameaças externas que enfrentam quanto pela desconfiança que passa a se estabelecer entre os personagens, vide a agressividade cada vez maior da comandante Harrigan, ou os sinais de que Kamelion possa estar sendo controlado pelo assassino foragido.
Eu não conhecia os Harrigan (raça que já haviam aparecido em outros trabalhos de Cavan Scott), mas achei bem interessante a inversão proposta dentro do Tropo dos alienígenas militarizados, com a personagem feminina sendo posta no papel da militar fanática sem coração, enquanto o personagem masculino desempenha o papel do soldado com maior sensibilidade. Gosto também de como o arco lida com o fato de o Doutor estar imobilizado pela maior parte da história, tendo que confiar completamente em Turlough para sobreviver aos perigos da floresta. É interessante também ouvir como o Time Lord lida com a possibilidade de nunca mais poder andar (pelo menos em sua quinta encarnação), ainda que esse elemento da história leve a um Deus Ex Machina um pouco incômodo que insere uma nova linha narrativa de forma um pouco atravessada na história do arco.
Mas o arco brilha mesmo pela forma como usa Kamelion. Na série, Tegan desaprova a presença do androide, por temer que ele possa vir a ser controlado por vilões e se voltar contra os seus amigos, que é o que acontece na última aparição do personagem. Inicialmente, o arco parece seguir o mesmo caminho, ao trazer o robô sendo manipulado para ficar contra o Doutor e seus companheiros. Mas o roteiro de Scott subverte essas expectativas com reviravoltas inteligentes, abordando o fato de que, por ser basicamente uma esponja telepática, Kamelion é influenciado não só por quem quer conscientemente controlá-lo, mas por qualquer tipo de força telepática ou emocional mais forte que esteja próxima a ele. Como então Kamelion reage a alguém que desconfia tão fortemente dele, ainda mais em um ambiente de tensão? Esse é o ponto mais interessante do arco, ao não só trabalhar oportunidades narrativas deixadas inexploradas na série no que diz respeito a Kamelion, mas por usar a relação do androide com Tegan para criar uma pequena metáfora sobre como a intolerância facilmente se volta contra o intolerante.
Nos aspectos técnicos, Devil In The Mist traz um trabalho competente de sonoplastia conduzido pelo diretor Ken Bentley. Mas devo confessar que, para uma história que depende fortemente da sensação de isolamento, desconfiança e paranoia, senti falta de um desenho de som mais enervante. Não que seja ruim, já escutei trabalhos mais malcuidados da Big Finish, mas faltou algo. Entre o elenco, eu destacaria os trabalhos de Anjella Mackintosh e John Voce como a Comandante Orna e o Oficial Rako, que com seus trabalhos de voz retratam muito bem a descida à insanidade da primeira, e a insegurança e posterior ganho de confiança do segundo.
O arco de Cavan Scott tem os seus problemas, concentrados principalmente na introdução e no fechamento da história, que dependem de algumas conveniências e elementos mal preparados para funcionar. Dito isso, os quatro episódios do arco trabalham muito bem as relações e dinâmicas de seus personagens, especialmente as existentes entre os Harrigan militares, e entre Tegan e Kamelion. Ainda que fique longe de ser um arco memorável, Devil In The Mist cumpre o objetivo de tentar dizer algo diferente sobre um dos mais escanteados e excêntricos Companions de Doctor Who. Resta saber se os arcos seguintes vão conseguir explorar o conceito de Kamelion sob um novo ângulo, tal como esta história fez.
Big Finish Mensal # 247: Devil In The Mist (Reino Unido. Janeiro de 2019)
Direção: Ken Bentley
Roteiro: Cavan Scott
Elenco: Peter Davison, Janet Fielding, Mark Strickson, Jon Culshaw, Anjella Mackintosh, John Voce, Simon Slater
130 Minutos
