Primeira sequência direta de um episódio de Black Mirror, USS Callister: Into Infinity encerra a 7ª Temporada revisitando o universo do capítulo homônimo da 4ª Temporada, expandindo-o com uma ousadia narrativa que mistura fanservice, inovação e, como de praxe, questionamentos sobre a condição humana no limiar do Universo digital. Toby Haynes faz um trabalho muito ágil na direção, e o roteiro de Charlie Brooker conecta eventos do passado com o presente de maneira rápida e fluída, permitindo ao espectador lembrar-se da trama original e ver os seus desdobramentos e expansão. Aqui, a tripulação do USS Callister, agora liderada por Nanette Cole (Cristin Milioti), enfrenta os desafios de um universo virtual (jogo) chamado Infinity, onde a sobrevivência contra milhões de players está em par com a vontade dela e seu time em escapar dessa realidade e, simplesmente, viver em paz. O episódio começa um pouco incerto de que caminho irá tomar (talvez até lento demais, para alguns gostos), mas o destino desses personagens é impressionante, transformando o que poderia ser apenas uma aventura de continuação numa reflexão sobre ter cuidado com o que deseja e as consequências inesperadas das ações tomadas em momentos de grande crise.
Vivendo como piratas digitais, a tripulação da USS Callister (ou o que ela simboliza) desafia hierarquias e panoramas sociais, ironizando o mito do Vale do Silício e escancarando muitas estruturas de poder marcadas por exploração, especialmente em ambientes de trabalho. Há uma crítica pesada às corporações que moldam a vida de milhares de pessoas partindo das piores relações humanas possíveis (sem contar os inúmeros crimes cometidos – e nunca punidos – pelos figurões corporativos ao longo dos anos), mas há também um olhar sensível para a solidão que atravessa as mais diversas formas de vida, um tema que ganha leveza e genialidade quando os personagens negociam privacidade por uma sessão de The Real Housewives of Atlanta, num instante que humaniza o artificial e nos faz sorrir (de nervoso) enquanto ponderamos o preço da conexão e de uma relação tão invasiva como a que temos ao final do capítulo. Claro que vemos mantido o diálogo com a ficção científica pregressa, bebendo de Star Trek e Galaxy Quest, mas o texto engorda essas inspirações com um humor ácido e dilemas ancorados na cultura gamer e em conceitos como permadeath (morte permanente num jogo) e microtransações (compras de itens virtuais), explorando debates reais sobre tempo investido e economia corrente dos jogos online.
A tecnologia de Into Infinity é, ao mesmo tempo, um campo de maravilhas e um campo minado, desafiando os personagens e o público a cada passo, criando cenas de grande tensão gameficada (palmas para a direção, que conseguiu explorar essa dinâmica em diversas sequências e cenários distintos) e conversas sobre clonagem digital e interfaces de cérebro-computador, mostrando que o progresso técnico é uma faca de dois gumes, prometendo imortalidade digital ao mesmo tempo que ameaça a essência do que nos torna humanos. O roteiro não nega a força dos jogos, mantendo a “brincadeira” ativa e mostrando muito mais como é este mundo dentro da simulação, enquanto Nanette é obrigada a conviver com os amigos clones que habitam seu cérebro — seriam eles vidas a preservar ou meros dados a descartar? Essa dúvida reflete a diferença de atitude da protagonista comparada com o legado de Daly (naquela vibe de “o poder só corrompe quem já era corrompido”), aceitando a convivência e fechando acordos.
A fusão das versões digital e real de Nanette cerca a temática da autenticidade (querendo ou não, é um pouco como vimos em Plaything) e também dialoga com a capacidade de uma “mente externa” estender ou permitir a vida de alguém, fechando o ciclo aberto lá em Common People. A ficcional “Espada Bargradiana”, utilizada no clímax da sequência de Nanette lidando/enfrentando a consciência escravizada de Daly, carrega poder e destruição, interrompendo explorações de diferentes níveis, cometidas por diferentes pessoas, inclusive uma das vítimas. A hilária, angustiante e simbiótica reviravolta fornece as últimas reflexões sobre compreensão de autonomia e preservação da vida, permitindo ao episódio se afirmar como uma sequência extremamente válida: um rio narrativo que flui entre a salvação e a tormenta, convidando-nos a mergulhar em suas águas e sair com um olhar renovado sobre o que significa ser (verdadeiramente) humano na vasta e incerta paisagem do infinito digital.
Black Mirror – 7X06: USS Callister: Into Infinity (EUA, 10 de abril de 2025)
Direção: Toby Haynes
Roteiro: Charlie Brooker, Bisha K. Ali, William Bridges, Bekka Bowling
Elenco: Cristin Milioti, Jimmi Simpson, Billy Magnussen, Osy Ikhile, Milanka Brooks, Paul G. Raymond, Jesse Plemons, Gwion Glyn, Hélder Fernandes, Ebenezer Gyau, Bilal Hasna, Iolanthe, Rita Estevanovich
Duração: 88 min.
