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Crítica | “Bugre” – Ney Matogrosso

Xamã urbano.

por Iago Iastrov
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Quando Ney Matogrosso escolheu Bugre como título de seu álbum de 1986, ele estava ressignificando (mais um) um preconceito em sua jornada, ao pegar uma palavra que os colonizadores usavam para humilhar os nativos brasileiros e transformá-la em bandeira pessoal, num disco que era um experimento na roupagem da década. A produção de Mazola faz uma mistura de rock progressivo, vanguarda paulista e raízes afro-indígenas, com sintetizadores, guitarras distorcidas, percussão diversa e cordas, tudo se sustentando numa estética que fez palco para debates sobre gênero e identidade.

Abrindo com a ótima Dívidas de Amor, o disco revela um tom profundamente denso e emocional. A parceria com Leoni explora o desequilíbrio das trocas afetivas, enquanto Ney alterna docilidade vocal (nos versos de confissão) com explosões dramáticas. O arranjo pop-rock incorpora saxofone e sintetizadores, criando uma atmosfera que flerta com o new wave.Vertigem, em parceria com o RPM, liga a sofisticação vocal de Ney com o rock nacional. A metáfora da vertigem como perda de controle diante do desejo atravessa a composição, que mistura programação eletrônica com guitarras. A voz grave e às vezes falada contrasta com momentos de elevação melódica, criando uma tensão que potencializa o sentido da letra.

Mente, Mente funciona como exercício de economia musical. O jogo de palavras entre substantivo e verbo vira crítica à manipulação e ao autoengano. O lado minimalista lembra a estética industrial da época. Ney interpreta com ironia controlada, transformando cada repetição da palavra-título numa variação que valoriza as camadas pretendidas pelo compositor. O clássico dos Mutantes, Balada do Louco, ganha releitura sombria que ressignifica o “louco” como símbolo de luta contra o impossível. Rita Lee e Arnaldo Baptista criaram um hino à contracultura; Ney aprofunda essa leitura incorporando o “louco” como metáfora do próprio “bugre“, aquele que vê o mundo com outros olhos.

A faixa-título é o manifesto do álbum. A letra busca imagens sensuais da corporeidade indígena, enquanto constrói a figura de um Ser como metáfora perfeita para identidades fluidas. A música mescla elementos tribais com sintetizadores atmosféricos, sugerindo ancestralidade e modernidade ao mesmo tempo. Ney interpreta com contornos xamânicos, usando vocalizações que remetem a cantos rituais, num baita arranjo de Arrigo Barnabé, que também é responsável pela percussão.

História do Brasil, de Jorge Aragão e Nilton Barros, transforma crítica social em faixa dançante. A crônica irônica dos ciclos históricos brasileiros ganha versão que funde samba urbano e metais de big band. Ney interpreta com indignação contida, deixando que a força política da letra se revele através da própria música.

A parceria com Cazuza em Fratura (Não) Exposta é uma das composições mais densas do disco. A letra explora a dor das feridas invisíveis, aquelas fraturas da alma que não se mostram mas condicionam toda a existência. O rock dramático sustenta a interpretação forte de Ney, que transmite vulnerabilidade sem soar lamentador. Pro John já é um respiro lírico através de uma instrumentalização elegante e contida. A letra pode ser lida como homenagem a John Lennon ou lamento por um amor perdido, ambiguidade que Ney explora com doçura melancólica.

Las Muchachas de Copacabana, de Chico Buarque, funciona como comentário irônico sobre a construção social do exótico. A letra ácida sobre estereótipos femininos cariocas ganha desconstrução musical através da sátira tropicalista com tempero de bolero e rumba. Ney interpreta sem caricatura, evidenciando como o “exótico” é fabricado e consumido pela sociedade.

O encerramento é com Povo do Ar, que funciona como transcendência espiritual. A letra evoca entidades etéreas e ancestralidade enquanto o arranjo mescla MPB com folk progressivo. Ney interpreta como se estivesse em transe, assumindo o papel de xamã urbano. Embora menos impactante que as faixas anteriores, a canção cumpre sua função conceitual, sugerindo que o “bugre” também abraça a transcendência. Acho-a a mais fraca do álbum, mas não desgosto dela. 

A recepção morna do disco empurrou Ney Matogrosso para um caminho mais sóbrio, no projeto seguinte. Com o tempo, porém, Bugre revelou-se visionário, antecipando musicalidades, discussões e abordagens que só ganhariam força massiva no Brasil anos depois. É um álbum sobre a potência criativa da marginalidade, onde o “bugre” não é mais vítima, mas sim um indivíduo transformador, capaz de ressignificar a tradição e abrir as portas da mente para o futuro.

Aumenta!: Las Muchachas de Copacabana
Diminui!:

Bugre
Artista: Ney Matogrosso
País: Brasil
Lançamento: 1986
Gravadora: Polygram/Barclay
Estilo: MPB, Pop, Rock, Música Latina, Samba
Duração: 34 min.

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