Scott Frank e Chandni Lakhani conseguiram algo que vem ficando cada vez mais raro na televisão: transformar um material literário já consolidado numa produção que tem identidade própria, mas não anula a essência do original — neste caso, A Mulher Enjaulada (2007) suspense do escritor dinamarquês Jussi Adler-Olsen. Em Dept. Q, muda-se o cenário de Copenhagen para Edimburgo e cria-se um universo investigativo onde cada elemento técnico e dramático se afunila com muita precisão para formar uma trama diferente e de enorme qualidade. Como showrunner, Scott Frank se mostra bastante maduro aqui, equilibrando múltiplas camadas de eventos investigativos (uma de suas marcas, como vimos em O Gambito da Rainha) sem empacar na coesão que sustenta os fundamentos detetivescos.
A arquitetura de Edimburgo é explorada, ao longo dos 9 episódios, de forma integrada à narrativa (como personagem), funcionando também como extensão do estado psicológico de Carl Morck, o personagem que costura a temporada. Matthew Goode constrói um detective que transita entre a genialidade investigativa e a toxicidade nas relações interpessoais, mas evita os clichês do “brilhante antissocial” porque dá nuances humanas genuínas ao personagem. Essa escolha interpretativa de Goode cria um protagonista que aparentemente devemos odiar, mas não conseguimos; um homem com uma dureza emocional e rudeza de trato que mascara vulnerabilidades profundas e uma culpa que atravessa cada decisão investigativa. Nessa linha — que se estende para todos os outros personagens, diga-se de passagem — toda a série funciona como um estudo sobre trauma institucional e individual, onde o desprezado Departamento Q simboliza exílio profissional e um estranho tipo de renascimento (em mais de uma esfera) para todos os envolvidos.
Explorar as dualidades com uma narrativa que entrelaça o caso central da promotora desaparecida (Merritt Lingard) com o desenvolvimento psicológico dos protagonistas é o encaminhamento básico do enredo. Transformando-se fisicamente, Chloe Pirrie dá um verdadeiro show na pele da promotora, vivendo um longo período de cativeiro sem ceder ao sensacionalismo gratuito (mérito também do roteiro), construindo uma vítima com complexidade psicológica até mesmo nas circunstâncias mais extremas. E por falar da excelência do roteiro, gosto imensamente da amplitude de funções estruturais que cada episódio recebe: desenvolver o mistério central, compor pistas para os mistérios paralelos e destacar, ponto a ponto, a evolução psicológica de cada personagem, inclusive os coadjuvantes; utilizando, de quebra, diferentes métodos investigativos. Isso é fortemente percebido com a chegada de Alexej Manvelov, o refugiado sírio Akram. Ele é uma presença magnética que funciona como contraponto moral e profissional a Carl, compondo uma dinâmica de parceria que evita os estereótipos do gênero policial através de uma química baseada em diferenças culturais e metodológicas que, estranhamente, se complementam.
Nós sentimos que existe algo de muito errado com a cidade onde tudo acontece. Os dominantes tons esverdeados e acinzentados da fotografia denunciam isso, criando uma aura macabra que dá à cidade de Edimburgo uma cara decadente, burocrática e melancólica. Esta foi uma escolha cromática perfeita para a mensagem e os sentimentos que o show constrói, uma vez que fortalece a sensação de claustrofobia (institucional) e isolamento emocional que vemos nos protagonistas. Ao dominar a nossa percepção, fica mais fácil captar certas nuances do roteiro sobre medos, fingimentos e perigos espalhados por todo lugar, como a relação entre a chefe Moira (Kate Dickie) e o medo de aranhas; as questões psicológicas de Rose (Leah Byrne) e sua fineza investigativa e olhar preciso para detalhes; o jogo perigoso e muito humano adotado pela psicóloga Rachel (Kelly Macdonald); o período hospitalizado de James (Jamie Sives) e a exploração de diferentes tipos de sentimentos numa amizade profissional, além da construção de um método de investigação à distância (algo que eu tenho dificuldade de gostar, mas aqui foi trabalhado de modo preciso). Como se vê, cada indivíduo é um fio importante na teia que leva à mosca capturada (Merritt), e o texto faz uso escrupuloso dos aspectos mais relevantes de cada uma dessas linhas.
A grandiosidade de Dept. Q parte dos pontos mais interessantes de séries de suspense, que são a investigação e a maneira como a direção irá mostrar o emprego do método (ou métodos), escalando para uma grande exigência das performances, da composição visual e auditiva dos blocos cênicos e da manutenção de um ritmo que é pendular, quase espectral, mantendo compassos diferentes dependendo da emoção a ser passada e do momento de desenvolvimento do enredo. Alguns espectadores reclamaram da forma como trataram o desenvolvimento de Akram; da junção dos crimes do ministério público à trama central; e da conclusão compassada, quase parando, em alguns momentos. De minha parte, não vi nenhum problema de ritmo nesses blocos. Entendo, porém, que espectadores diferentes verão a qualidade dessas execuções com diferentes olhos, mas há que se reconhecer que não existe, por parte da montagem de Michelle Tesoro, um “erro” de cadenciamento.
E é por isso que eu terminei o nono episódio de Dept. Q naquele estado de graça que normalmente nos toma quando acompanhamos uma maravilhosa produção de um dos nossos gêneros favoritos. Vinda de um material original denso e frio (não no sentido negativo do termo), a premissa e seus desdobramentos poderiam criar uma saga demasiadamente fechada, talvez até truncada pela riqueza de detalhes e ramificações. Mas o que temos aqui é ouro puro. Uma série de crimes e investigação com uma boa base de métodos, uma extensão aplaudível de procedimentos práticos para colocá-los na tela, e uma finalização que acerta até mesmo naquilo que escolhe para deixar sem resposta e montar o gancho de uma possível segunda temporada. É como acertar na loteria!
Dept. Q – 1ª Temporada (Dept. Q) — Reino Unido, 2025
Criação: Scott Frank, Chandni Lakhani
Direção: Scott Frank, Elisa Amoruso
Roteiro: Scott Frank, Chandni Lakhani, Stephen Greenhorn, Colette Kane (baseado na obra de Jussi Adler-Olsen)
Elenco: Matthew Goode, Chloe Pirrie, Alexej Manvelov, Steven Miller, Jamie Sives, Leah Byrne, Alison Peebles, Kelly Macdonald, Aaron McVeigh, Sanjeev Kohli, Catriona Stirling, Aron Dochard, Kate Dickie, Bobby Rainsbury, Tom Bulpett, Christopher McPhillips, Paul Ellard, Kal Sabir, Patrick Kennedy, Paddy Towers, Shirley Henderson, James Macnaughton, Angus Yellowlees, Gabrielle Monica Hughes, Ellen Bannerman, Lily Knight, Gilly Gilchrist, Kai Alexander, Clive Russell, Fraser Saunders, Stuart Bowman, Douglas Russell
Duração: 9 episódios entre 50 e 60 min.