Alexandre Koberidze, cineasta georgiano, não apenas eleva sua expressividade, mas estabelece a jornada como o ponto focal da arte, um triunfo onde o processo criativo, e não o desfecho narrativo, é a verdadeira recompensa. Folha Seca, em suas quase três horas de meditação, demonstra que o verdadeiro destino é o caminho. É, dessa maneira, em uma contemporaneidade marcada por filmes completamente utilitaristas e frenéticos, uma ode à simplicidade das mais triviais jornadas. Em um mundo em que Vingadores: Ultimato é a obra mais adorada e assistida de todos os tempos, três horas de rodagem sobre a busca por uma fotógrafa – pasmem, em uma qualidade de 144p – parece ser a destruição total do cinema de TikTok. Em um mundo em que Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo varre a temporada de premiações, ao mesmo tempo que Folha Seca retroage o bom cinema, também mostra que o cinema de quinze segundos de reels pouco consegue, verdadeiramente, ser ético.
A primeira prova da intenção não convencional do diretor reside em sua escolha estética fundamental: a caracterização da tela no formato 1.33:1, que evoca a imagem das televisões antigas e a textura granulada do VHS ou das transmissões via satélite. Sim, o filme é, aos olhos do Imax, feio. Longe de ser um mero recurso de sabor nostálgico, essa pátina vintage que Koberidze, que também assina a fotografia e a montagem, impõe à obra, cria uma atmosfera atemporal e deliberadamente poética, gerando um contraste instigante com a contemporaneidade da trama, sutilmente marcada pela presença de celulares – reitero a brilhante crítica ao mundo de deslizamentos de tela . Essa decisão visual é o primeiro ato de rebeldia de um filme menos preocupado com a convenção narrativa do que com a imersão sensorial do espectador, estabelecendo o tom de uma busca que é fundamentalmente lírica.
A maior ousadia de Koberidze, contudo, manifesta-se na inclusão de personagens etéreos. O protagonista, Irakli, interpretado por David Koberidze, embarca numa viagem serena pela Geórgia em busca de sua filha desaparecida, Lisa, uma fotógrafa esportiva que partiu para documentar campos de futebol em vilarejos distantes. Ele é acompanhado por Levani, o enigmático melhor amigo da filha, cuja ausência física é a chave para o estudo da conexão humana. Levani é, propositalmente e literalmente, invisível. A interação constante entre Irakli e Levani, em que apenas a voz do último, vivido por Otar Nijaradze, é audível, transforma o diálogo num exercício sublime de imaginação. Essa escolha não se configura como um artifício aleatório, mas sim como uma celebração das presenças que sentimos, das conversas que moldam nossa trajetória, mesmo quando o interlocutor não está fisicamente ao nosso lado. É a afirmação de que a conexão, em sua essência, transcende o visível.
A busca infrutífera pela filha desaparecida, cujos fragmentos de presença são a única evidência encontrada, é, na verdade, um pretexto lírico. O filme de Koberidze é uma meditação hipnotizante, um registro sereno preenchido por cenas que, embora possam parecer desvinculadas do progresso da procura, são vitais para capturar a essência da viagem e da contemplação. Irakli, nesse sentido, é um herói acidental. Ele tenta decifrar a atitude enigmática de Lisa, que deixou uma carta pedindo para não ser procurada, ao mesmo tempo em que testemunha o panorama melancólico do declínio do futebol, outrora uma paixão nacional, nos recantos rurais do país. Essa decadência do esporte justamente espelha o título, Folha Seca, uma homenagem ao famoso chute inventado pelo brasileiro Didi na década de 1950, que simboliza a ruptura e a perda da primavera ou da vitalidade de um sentimento.
A paleta de cores intencionalmente utilizada, com o predomínio de amarelo e vermelho, não é um mero capricho estético. Ela simboliza os extremos da emoção e a incerteza do caminho percorrido por Irakli. Em contraponto a essa angústia e dúvida, o rosa das flores atua como um leitmotiv, suavizando o sofrimento e sugerindo a possibilidade de um reencontro carinhoso, uma nova primavera na relação que se encontrava no outono do amor.
A jornada, nesse contexto, torna-se a reconciliação. A vagarosidade e a serenidade das tomadas, sublinhadas pela música composta por Giorgi Koberidze, conduzem a um ritmo mais lento e contemplativo que é a própria resposta ao conflito. Ao decidir encerrar o filme sem uma conclusão tradicional, Koberidze confirma a mensagem profunda e inspiradora da obra: o valor supremo está na jornad, e não na chegada. A busca da filha se transforma numa viagem prazerosa e contemplativa, permitindo a Irakli – e, por extensão, ao espectador – absorver a beleza intrínseca em cada paisagem e em cada encontro.
Desta forma, Folha Seca não se resume a um filme sobre uma procura, mas revela um triunfo artístico que cumpre, em espírito, o projeto de Lisa: registrar e celebrar a beleza intrínseca da vida e do mundo. Ao regressar ao cotidiano pacato de Tiblíssi, a única corrida que resta é a do renascimento e reabilitação de paixões que, em essência, jamais foram perdidas. A vida e o amor sempre encontram um curso possível, apesar de todas as dificuldades. Em última análise, o filme de Alexandre Koberidze nos lembra que não se pode esperar a primavera sem aceitar o inverno, e a arte de Koberidze reside justamente em encontrar a beleza intrínseca no processo de aceitação.
Folha Seca (Xmeli Potoli) — Alemanha, Geórgia, 2025
Direção: Alexandre Koberidze
Roteiro: Alexandre Koberidze
Elenco: David Koberidze, Otar Nijaradze
Duração: 186 min.
