Quando a Sucker Punch lançou Ghost of Tsushima, em 2020, o estúdio não apenas entregou mais um jogo de ação em mundo aberto, mas apresentou uma experiência que dialoga com a História, com a tradição cultural japonesa e com a memória cinematográfica de mestres como Akira Kurosawa. O título se passa no final do século XIII, durante a primeira invasão mongol ao Japão, que teve como ponto de entrada justamente a ilha de Tsushima, um território pequeno e vulnerável, situado entre a Coreia e a ilha principal de Kyushu. Os mongóis, liderados por Kublai Khan, buscavam expandir seu império pelo mar, e Tsushima foi a linha de frente desse embate.
Essa escolha histórica dá ao jogo uma base sólida, ainda que o enredo seja ficcional e dramatizado. O protagonista, Jin Sakai, é um samurai que sobrevive ao massacre inicial e assume a tarefa de defender sua terra natal. O dilema central que o acompanha, entre ser fiel ao código de honra samurai ou adotar métodos furtivos e pragmáticos para derrotar os inimigos, reflete uma tensão real entre tradição e sobrevivência, um choque de valores que ressoa tanto na História quanto no mito. Ao assumir esse conflito como motor narrativo, Ghost of Tsushima não se limita a contar uma fábula de vingança, mas coloca o jogador diante de questões universais sobre identidade, lealdade e transformação.
O primeiro impacto do jogo é a forma como o cenário é apresentado. Tsushima é recriada com uma beleza impressionante, ainda que estilizada para privilegiar a contemplação. Campos de flores ondulam ao vento, florestas de bambu se erguem como corredores vivos, templos repousam em montanhas enevoadas e vilarejos simples se espalham em clareiras entre rios e trilhas. A cada passo, há uma sensação de que o espaço não é apenas cenário, mas personagem.

Essa ambientação não busca apenas a fidelidade arqueológica, mas a evocação de um ideal estético. O Japão do século XIII era marcado por uma vida rural modesta, por castelos em madeira e por comunidades pequenas que viviam em constante relação com a natureza. O jogo traduz isso com um uso magistral das cores, da luz e do movimento. O vento, em particular, é mais do que um efeito visual: ele guia o jogador em direção aos objetivos, substituindo setas ou bússolas tradicionais. É uma escolha poética, que faz da própria natureza uma aliada, além de reforçar a ideia de que a ilha tem uma alma, e que Jin se conecta a ela em sua jornada.
A travessia dos vilarejos transmite uma sensação de vida simples, com moradores cuidando de plantações, ferreiros trabalhando em suas oficinas e monges entoando cânticos nos templos. Mesmo em meio à tragédia da invasão, há momentos de calma que evocam um Japão pré-industrial profundamente ligado ao ritmo natural. A sensação de caminhar a cavalo por essas paisagens, ouvir os pássaros, observar as pétalas caindo no chão, é uma experiência contemplativa que poucos jogos conseguem oferecer.
Se o cenário natural encanta, a presença mongol devolve brutalidade à narrativa. Logo no início, vemos como os invasores não apenas dominam militarmente, mas também humilham os samurais, que, seguindo seu código de honra, insistem em duelos frontais e acabam massacrados. O vilão central, Khotun Khan, é construído como um antagonista frio e calculista, capaz de respeitar a cultura japonesa o suficiente para usá-la contra seus oponentes. Essa abordagem realça o dilema de Jin: se o inimigo é tão pragmático, de que adianta insistir em tradições que levam à derrota?
Nesse sentido, o coração da narrativa é o dilema de Jin. Educado como samurai, ele acredita na honra dos duelos, no combate direto e no enfrentamento justo. Mas diante da devastação, ele descobre que essa postura não basta. Para salvar seu povo, precisa abraçar métodos de espionagem, assassinato silencioso, armadilhas e envenenamento. Essa transição, que o aproxima da figura do “fantasma”, é mais do que uma evolução de jogabilidade: é uma desconstrução identitária.
O jogo não trata essa transformação de forma simplista. Os diálogos com o tio de Jin, Lorde Shimura, deixam claro o choque entre gerações. Shimura insiste que um samurai sem honra é apenas um assassino. Jin retruca que de nada serve a honra se todos morrerem. Esse conflito culmina em momentos de forte carga dramática, especialmente no desfecho, quando o jogador é obrigado a fazer uma escolha que ecoa em toda a trajetória de Jin.

No plano da jogabilidade, Ghost of Tsushima oferece um equilíbrio refinado entre combate direto e furtividade. O sistema de luta com a katana é construído sobre quatro posturas distintas, cada uma mais eficaz contra um tipo de inimigo; espadachins, lanceiros, brutos e arqueiros. Essa divisão exige atenção e ritmo, forçando o jogador a alternar posturas em plena batalha, o que resulta em duelos dinâmicos e viscerais. O som metálico das espadas, os gritos dos inimigos e a coreografia dos movimentos criam uma sensação de autenticidade.
Por outro lado, os elementos furtivos permitem outra abordagem: aproximação silenciosa, uso de bombas de fumaça, flechas envenenadas, cordas e armadilhas. A transição entre essas formas de combate não é apenas mecânica, mas narrativa: cada vez que Jin age nas sombras, o jogador sente o peso de se afastar do ideal samurai, reforçando o dilema central.
O mundo aberto é dividido em atos, cada um avançando a história enquanto libera novas áreas. As missões principais constroem a jornada de Jin contra Khotun Khan, mas as secundárias, chamadas de “Contos”, são igualmente relevantes. Elas exploram histórias de aldeões, monges, guerreiros e amigos de Jin, oferecendo pequenas tragédias e dilemas que reforçam o impacto da invasão. Os arcos de aliados como Masako, a guerreira que busca vingança pela morte da família, ou Ishikawa, o arqueiro obcecado por sua aluna traidora, acrescentam camadas de moralidade e dor, expandindo a noção de que a guerra corrói não apenas territórios, mas laços humanos.
O jogo também inclui os “Contos Míticos”, missões especiais que evocam lendas japonesas e permitem desbloquear habilidades ou equipamentos únicos. Essas histórias, contadas por músicos ou viajantes, reforçam a sensação de que Jin está se tornando parte da própria mitologia da ilha. O equilíbrio entre missões principais, secundárias e míticas dá ao jogador uma sensação de variedade sem perder coesão.
Explorar Tsushima não é apenas um exercício de coleta de recursos ou cumprimento de objetivos. É uma experiência estética e quase espiritual. Encontrar fontes termais, por exemplo, não serve apenas para aumentar a vitalidade de Jin, mas para refletir sobre sua jornada, com pequenos monólogos que revelam suas angústias. Seguir raposas até altares escondidos reforça a conexão com a espiritualidade da ilha. A música das flautas, que pode mudar o clima, é outro detalhe que confere personalidade ao protagonista e ao mundo.
As cidades maiores, como Castle Kaneda ou o vilarejo de Komatsu, oferecem contrastes: de um lado, a destruição causada pelos mongóis; de outro, a perseverança dos sobreviventes. Já os templos e santuários, acessíveis após escaladas desafiadoras, são recompensas não apenas práticas, mas também visuais, revelando panoramas que transformam a contemplação em parte da jogabilidade.

A trilha sonora, composta por Ilan Eshkeri e Shigeru Umebayashi, equilibra grandiosidade e introspecção. Em batalhas, os tambores e cordas aumentam a tensão; em momentos de exploração, melodias suaves de flautas japonesas e instrumentos de cordas criam uma atmosfera meditativa. O desenho de som é igualmente notável: o vento que sopra entre as árvores, o barulho das folhas secas, o galope do cavalo, o tilintar do metal. Essa imersão sonora reforça a ideia de que Tsushima é viva e que o jogador é parte dessa sinfonia.
O modo “Kurosawa”, em preto e branco, não é apenas um recurso estético, mas um tributo à cinematografia que inspirou o jogo. Mais do que homenagem, é um lembrete de que Ghost of Tsushima bebe de uma tradição visual que transformou o samurai em arquétipo universal. Os duelos individuais, muitas vezes travados em campos abertos com folhas voando, remetem diretamente a clássicos como Yojimbo ou Os Sete Samurais. O enquadramento das câmeras, o uso da natureza como testemunha dos combates e a solenidade dos gestos reforçam essa conexão entre o cinema e o jogo.
Como todo jogo de mundo aberto, Ghost of Tsushima não escapa de certa repetição em suas atividades. Libertar vilarejos, eliminar acampamentos inimigos, coletar recursos, tudo isso, em excesso, pode soar mecânico. Ainda assim, a beleza do cenário e a variedade das missões secundárias mitigam essa sensação, mantendo o envolvimento do jogador. Outro ponto criticado é a inteligência artificial dos inimigos, que nem sempre reage de maneira convincente. Mas, diante da força estética e narrativa do conjunto, esses deslizes parecem menores.
A obra se consolidou não apenas como um sucesso, mas como um marco cultural. Mais do que um título de ação, ele é um convite à contemplação. Ao percorrer campos dourados, ao descansar em fontes termais, ao observar o voo dos pássaros, o jogador experimenta um Japão idealizado, mas profundamente respeitoso. E ao mesmo tempo, é confrontado com a brutalidade da guerra e com a dor de escolhas impossíveis.
Ghost of Tsushima é um jogo que une espetáculo visual, profundidade narrativa e intensidade mecânica. Ao recriar a ilha de Tsushima em um dos períodos mais críticos de sua história, o game oferece não apenas uma aventura empolgante, mas também um mergulho em valores culturais e dilemas humanos universais. É um conto sobre a necessidade de mudar para sobreviver, sobre a dor de abandonar tradições e sobre a possibilidade de criar novos mitos, nos entregando um presente desde a primeira cena: permitir que o mito do samurai, por algumas horas, seja seu.
Ghost of Tsushima
Desenvolvedora: Sucker Punch
Direção: Nate Fox, Jason Connell
Roteiro: Ian Ryan, Liz Albl, Patrick Downs, Jordan Lemos
Publicadora: Sony Interactive Entertainment
Lançamento: 17 de julho de 2020
Gênero: Ação, Aventura
Disponível para: PS4, PS5, PC
