Documentários que acompanham quase em tempo real tragédias humanas normalmente causado por guerras são essenciais. Em um mundo conectado, eles não só se tornaram mais fáceis de serem produzidos, como eles funcionam como instrumentos para dar voz a quem sofre no exato momento em que os horrores acontecem. Durante a Guerra Civil da Síria, que apenas em tese acabou, diversas obras magníficas desse tipo chegaram ao Ocidente, como #MinhaFuga, Últimos Homens em Aleppo e The Cave. O cerco a Gaza e o massacre dos Palestinos por Israel, iniciado em 07 de outubro de 2023, apresenta problemas de outra ordem, já que é muito difícil alguém conseguir entrar ou sair de lá, já que até mesmo a ajuda humanitária vem sendo impedida de se aproximar.
A importância de Guarde o Coração na Palma da Mão e Caminhe é evidente e a maneira como o documentário foi produzido, ou seja, quase que exclusivamente por meio de chamadas de vídeo entre a diretora iraniana Sepideh Farsi e a fotógrafa palestina Fatima Hassouna (ou Fatma, também Fatem), moradora do norte de Gaza, era a forma possível de criar conteúdo a ser mostrado ao Ocidente na forma de um longa-metragem. O que vemos, durante um ano de ligações de vídeo, mensagens de áudio, mensagens escritas e também fotografias tiradas por Fatima, é o cotidiano de uma zona de guerra ainda que a palavra guerra passe a impressão de que existe resistência minimamente proporcional, o que obviamente não é o caso. Com todas as limitações de locomoção e de conexão com a Internet, o que fica a cada ligação com Fatima é seu impossível sorriso radiante que acompanha a jovem de 24 anos por todos os momentos, mesmo os mais tristes. É de partir o coração vê-la dizer que perdeu 13 membros de sua família, inclusive sua querida avó, com esse mesmo sorriso no rosto, sorriso esse que não é “para a câmera”, mas sim uma demonstração absoluta de força, coragem e de luta. Fatima não tem com o que lutar que não seja com sua voz, com suas imagens e com seu belo e lancinante sorriso.
Enquanto é impossível encontrar problemas com a proposta do documentário e, mais ainda, com Fatima Hassouna, infelizmente as escolhas de Sepideh Farsi para seu filme são duvidosas a ponto de ela conseguir reduzir o impacto das imagens que mostra, o que faz com que o resultado final seja cambaleante – para dizer o mínimo – sob o ponto de vista cinematográfico. Para começo de conversa, independente de fatores fora do controle de Farsi, a diretora não parece ter se preparado para fazer perguntas relevantes para Fatima. Ao contrário, são sempre as mesmas perguntas inócuas, como “como você vai?”, “onde você está?” que, por mais que sejam naturais em uma conversa, não precisavam ser mostradas em toda ligação, o que seria resolvido muito facilmente por um trabalho de edição minimamente decente. Mas, mais do que isso, o problema central está na falta de perguntas bem pensadas, que permitam que Fatima desenvolva raciocínios e, mesmo obviamente não podendo abordar assuntos que ela desconhece, poderia focar na sua vida e na vida de seus parentes e amigos.
Além disso, Farsi, sabendo que um dos sonhos de Fatima é viajar o mundo – mas deixando bem claro que ela deseja retornar para Gaza, que é seu lar – parece insensível ao oferecer informações sobre as viagens dela própria, ora dizendo que está no Egito, depois em Paris, no Canadá, na praia em algum lugar e assim por diante. Uma coisa é Fatima perguntar, outra bem diferente é Farsi voluntariar essas informações, o que seria semelhante à diretora fazer as ligações enquanto refestela-se com comida abundante diante da fome que os palestinos sentem (e ela não faz isso, ainda bem, só estou fazendo um paralelo exagerado). E, como se isso não bastasse, Farsi faz uso de filmagens inexplicáveis de reportagens jornalísticas na televisão e no computador, em que faz close-up nas bocas dos âncoras como se estivesse tentando fazer algo autoral, mas falhando miseravelmente. E o que dizer das DUAS vezes em que ela pede para Fatima esperar – a conexão de Internet em Gaza é péssima, vejam bem – para que ela abra a porta de casa para seu gato entrar? Seu gato entrar! E Farsi ainda filma todo o seu trajeto até a porta nas duas vezes, novamente demonstrando que ela parece preocupada em dar um ar de autenticidade, de filme de guerrilha, em uma situação que isso se torna completamente sem sentido, pois é Fatima e não Farsi que está no meio da guerra e é Fatima que interessa e não o gato de Farsi.
Sobre as limitações técnicas, a Internet é o maior problema e, no lugar de suavizar isso para seu documentário, Farsi, ao contrário, torna a questão onipresente, com ligações caindo o tempo todo e uma qualidade de imagem péssima, sem contar com a inevitável perda de uma palavra a cada três que Fatima fala. Enquanto mostrar as ligações caindo uma ou duas vezes para estabelecer o problema era importante, fazer isso ao longo de todo o documentário e, ainda por cima, deixar a imagem parada na tela vazia do celular é inexplicável, assim como é inexplicável ela não ter tentado dar um mínimo de tratamento para as imagens. Novamente, ela quer fazer um filme de guerrilha sem estar na guerrilha e tendo instrumentos à sua disposição para tornar tudo melhor para o espectador. E não me diga que Farsi não se importa em tornar as coisas mais palatáveis ao espectador, pois, ao determinar que a conversa entre elas deve ser sempre em inglês – o que evita legendas e atrai mais o público preguiçoso -, ela impede que Fatima manifeste seus sentimentos em toda sua plenitude, pois a jovem não tem o domínio da língua inglesa, chegando até mesmo a desejar em voz alta que ela pudesse falar em árabe. Sim, eu sei que há uma barreira linguística entre a diretora, que é iraniana exilada e, portanto, fala farsi, e Fatima, que fala árabe, mas deveria haver um meio termo, talvez a contratação de alguém que falasse árabe para ficar ao lado de Farsi nas ligações.
E a filmagem em si? No lugar de usar as ligações como a imagem bruta do longa, Farsi decidiu filmar as ligações e não com uma câmera bem colocada, mas sim com outro celular em sua mão, o que torna tudo pior ainda, mais uma vez demonstrando que Farsi quis artificialmente ampliar a sensação de filmagem de guerrilha que ela simplesmente não precisava fazer. Tudo isso somado, no final das contas, abala a força que Guarde o Coração na Palma da Mão e Caminhe poderia ter para além de ser um filme sobre o recorte de uma tragédia em andamento. Mesmo assim, em meio a escolhas equivocadas de Sepideh Farsi, o brilhante sorriso de Fatima Hassouna e tudo o que ele representa ficam intensamente gravados na mente do espectador e isso, por si só, já faz valer a experiência.
Guarde o Coração na Palma da Mão e Caminhe (Put Your Soul on Your Hand and Walk – França/Palestina/Irã)
Direção: Sepideh Farsi
Com: Sepideh Farsi, Fatima Hassouna
Duração: 113 min.