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Crítica | Hacks – 1ª Temporada

por Ritter Fan
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Hacks é, ao mesmo tempo, a celebração máxima do renascimento da veteraníssima Jean Smart na televisão mainstream, algo que começou com força com seus papeis em Legion e Watchmen, continuando com Mare of Easttown, e uma mais do que bem-vinda homenagem à sensacional Joan Rivers, uma das mulheres pioneiras na comédia, que teve uma carreira vasta como atriz, roteirista, produtora, anfitriã de televisão e apresentadora de programa de vendas por telefone, tornando-se um ícone americano. E não, Hacks não é uma cinebiografia, mas é mais do que evidente que o trio de showrunners que comanda a série inspirou-se muito claramente na trajetória de Rivers para criar Deborah Vance, milionária comediante de stand-up já na terceira idade com um show diário e permanente há décadas em um daqueles mega-hotéis na constantemente decadente Las Vegas.

Conhecendo um pouco Rivers – que, infelizmente, pouca gente mais jovem se lembra hoje em dia – é perfeitamente possível distinguir seu humor autodepreciativo ao longo de toda a temporada inaugural, com a Vance vivida inigualavelmente por Smart sendo 100% autoconsciente do que e de quem ela é do tipo de comédia que faz para viver da mesma maneira congelada há anos e anos. Smart tem em Hacks sua caixinha de areia para brilhar a cada segundo de projeção de cada um dos 10 episódios da série ao ponto de ser angustiante assisti-la sabendo que, a cada fim de capítulo, o espectador terá menos de material inédito da atriz para apreciar. Porque sim, a série é boa nesse nível e porque sim, Smart domina cada fotograma da obra.

O estopim narrativo é duplo. De um lado, Marty Ghilain (Christopher McDonald), CEO do hotel e casino Palmetto, deseja reduzir o número de dias de show de Vance para abrir espaço para outros programas mais “modernos” e, de outro, a jovem comediante Ava Daniels (Hannah Einbinder) acabou de ser “cancelada” por algo tido como inapropriado que disse em redes sociais. Como tanto Vance quanto Daniels são representadas pelo agente de talentos Jimmy (Paul W. Downs), ele decide, à revelia das duas, reuni-las de forma que a segunda consiga um emprego e a primeira, com a pegada mais Geração da Z, possa ter seu show atualizado. O que parte daí, claro, é o típico resultado de um enorme e quase que completamente instransponível abismo de gerações que leva tanto à comicidade da série, quanto também – e principalmente – ao seu drama e às suas críticas sociais.

Deborah Vance, assim como Joan Rivers, é um caso raro de extremo sucesso de uma mulher no entretenimento em um mundo dominado por homens, algo que a presença castradora de Ghilain deixa muito claro, mas esse sucesso todo, escavado à duras penas, cobra seu preço e o maior deles é o isolamento e solidão. Em sua absurdamente enorme mansão no deserto de Nevada que faz vezes como seu centro de operações, com direito até a um diretor financeiro sempre presente, Marcus (Carl Clemons-Hopkins), Vance vive uma vida emparedada que só se comunica com o mundo exterior quando ela sai para cumprir suas obrigações, ou seja, seus adorados shows, suas presenças públicas patrocinadas e seus voos para Los Angeles para participar do lucrativo canal de vendas pelo telefone. A fama é abordada como uma maldição na temporada, pois mesmo que ela traga dinheiro às arrobas para aqueles que se destacam, não há muito o que fazer com ele a partir de certa quantidade e de certa altura na vida, o que, no caso de Vance, significa basicamente sacrificar sua filha DJ (Kaitlin Olson) que tem uma vida perdida e sempre à sombra da mãe.

Os roteiros dos 10 episódios da série são estruturados a partir da noção já estabelecida de fatos pretéritos – o sucesso de Vance e o fracasso de Daniels -, algo que é colocado no colo do espectador de maneira muito clara, mas razoavelmente indireta. E essa – além da presença de Smart, claro – é que faz Hacks realmente funcionar. O que vemos é, sem pressa, mas sempre com uma cadência gostosa, o descortinamento da vida pregressa de Vance, do que a levou ao ponto em que está e o que isso significou para ela e o que potencialmente inspirou outras muheres a fazerem. Daniels é o veículo usado para esse trabalho, já que, para conseguir escrever gags que funcionem na cabeça de sua relutante empregadora, ela precisa conhecê-la e, nesse processo, entender que a própria Daniels, por mais que se recuse a aceitar, só existe de verdade pelas avenidas abertas por outras mulheres como Vance.

Meu único ponto de contenda com a forma como a história é contada reside justamente na personagem de Ava Daniels por pelo menos os três primeiros episódios. A história pessoal da jovem perdida que se vê basicamente obrigada a criar piadas novas para uma old hack cujo valor ela simplesmente não enxerga demora demais a engrenar, com Hannah Einbinder, não exatamente por culpa dela, claro, demorando a encontrar espaço diante da enorme e poderosa presença de Jean Smart na telinha. É uma luta ingrata e nem sempre dá certo, algo que talvez pudesse ter sido corrigido com um material que contextualizasse sua personagem mais no começo de sua jornada, para torná-la identificável para além de um instrumento de conflito de gerações. Felizmente, porém, pouco antes da metade da temporada, Daniels encontra seu nicho, com Einbinder ganhando voz própria, ainda que sempre algumas oitavas abaixo da de Smart.

Hacks é um estupendo estudo de uma riquíssima – em todos os sentidos – personagem que, mesmo fictícia, encontra ecos constantes na realidade, com Jean Smart mastigando o cenário a todo o momento. Um literal espetáculo de série repleta de coisas a dizer, de lições a dar e de morais a serem oferecidas em um mundo que precisa aprender a olhar para seu passado e, arriscando-me a soar clichê, aprender com os erros, identificar os acertos e aprimorar a experiência de vida para todos.

Hacks – 1ª Temporada (Idem – EUA, 13 de maio a 10 de junho de 2021)
Criação e showrunners: Lucia Aniello, Paul W. Downs, Jen Statsky
Direção: Lucia Aniello, Desiree Akhavan, Paul W. Downs
Roteiro: Lucia Aniello, Paul W. Downs, Jen Statsky, Joanna Calo, Andrew Law, Katherine Kearns, Pat Regan, Samantha Riley, Ariel Karlin
Elenco: Jean Smart, Hannah Einbinder, Carl Clemons-Hopkins, Kaitlin Olson, Christopher McDonald, Paul W. Downs, Mark Indelicato, Poppy Liu, Johnny Sibilly, Megan Stalter, Rose Abdoo, Angela Elayne Gibbs, Lorenza Izzo, Nina Tarr, Jane Adams
Duração: 300 min. (10 episódios)

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