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Crítica | Herói de Sangue

Homens africanos usados como bucha de canhão na 1ª Guerra Mundial.

por Luiz Santiago
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O título original de Herói de Sangue é Tirailleurs, nome que designa os fuzileiros da infantaria colonial francesa, cujas atuações mais famosas se deram durante as duas guerras mundiais. Esse recrutamento não se limitava ao Senegal; na verdade, vinha de toda a “África Ocidental Francesa”, largo território que hoje representa 8 países africanos, onde a França escravizava e/ou explorava desumanamente os habitantes locais. Ou seja, cometia os mesmos crimes contra a humanidade que as nações europeias cometeram em suas colônias de África e Ásia. Essas divisões acabaram recebendo o adjetivo de “tirailleurs sénégalais“, por ter sido neste país que se formou o primeiro regimento “tirailleur” africano — e essa distinção é necessária, porque também haviam tirailleurs na “Indochina Francesa”, hoje Vietnã, Laos, Camboja e a província de Cantão/Guangdong, na China.

O roteiro de Olivier Demangel e Mathieu Vadepied se coloca como memória desse pedaço da História que a França quer esquecer, e embora não dedique tempo a dar nome às atrocidades cometidas pelos franceses no continente africano (só para ficar nos tirailleurs, não nos esqueçamos do horrendo Massacre de Thiaroye, evento para o qual há um ótimo filme de Ousmane Sembène lançado em 1988), fala o suficiente para qualquer espectador com o mínimo de entendimento sobre a dinâmica do capital colonizador europeu odiar ainda mais esse processo. Thierno Diallo (Alassane Diong, em interpretação contida, mas muito marcante) é capturado e forçado, junto de tantos outros jovens senegaleses, a servir de bucha de canhão nas trincheiras da 1ª Guerra Mundial e, para protegê-lo, seu pai também se alista no Exército. A interpretação de Omar Sy para o personagem do pai é digna de aplausos, principalmente porque o roteiro trabalha tanto a parte emotiva da relação paterna quanto os dilemas que um pai-soldado protegendo um filho-soldado podem trazer.

A produção foi muito certeira em filmar a obra em francês e fula (ou pular), pois a questão da língua dá um peso muito grande à mensagem que a obra pretende transmitir. O cerne é político: trata de legado histórico e de memória, mas a abordagem para isso vem através da convivência entre soldados de diferentes etnias africanas, com seus conflitos internos, seus crimes, sua humanidade, lealdade, coragem ou erros e covardia. Um filme que, assim como outras obras sobre esse momento histórico que focam na essência humana e na transformação do ser humano em meio ao horror da guerra (A Grande Ilusão, Nada de Novo no Front ou Glória Feita de Sangue, só para citar alguns) está preocupado com as vítimas e procura entender como a busca por um escape do inferno transforma uma pessoa para pior. Nessa esteira entra as diferentes relações entre pais e filhos, vista entre os protagonistas e também na figura do Tenente Chambreau (Jonas Bloquet, que aparece pouco, mas está muito bem no filme, com destaque para a fantástica cena em que ele conversa com Diallo, oferecendo-lhe uma bebida pela primeira vez).

Mathieu Vadepied usa a câmera na mão em momentos-chave da obra, e filma muito bem os embates dos soldados africanos contra os alemães. O diretor também sabe explorar o silêncio, uma qualidade que infelizmente está se perdendo no cinema de nossos tempos. Quando utilizado no momento certo, o silêncio tem a capacidade de tornar tensa uma sequência inteira, e permitir reflexões adicionais àquilo que o roteiro ou mesmo a atuação de um elenco tão bom quanto o que temos neste filme é capaz de entregar. Herói de Sangue mostra um aspecto propositalmente esquecido da colonização francesa na África, o de uso descartável de homens negros na linha de frente da Grande Guerra, mas fala da sobrevivência, da força de um laço emotivo, dos problemas de relacionamento e principalmente da memória dessas pessoas que foram vistas como dispensáveis, e hoje, tardiamente, têm o seu sacrifício lembrado e valorizado.

Apesar da montagem abrupta e com um critério de continuidade narrativamente confuso em algumas cenas (com saltos estranhos entre dia e noite, interrupção de falas sem um motivo relevante ou mudança espacial aleatória), a fita tem grande impacto sobre o espectador porque a direção consegue contar uma boa história a partir de diferentes caminhos de interpretação e possibilidades de análise. Há que se elogiar também a fotografia noturna de Luis Armando Arteaga, que consegue fazer algo visualmente belo, mas não monocromático e nem predominantemente impossível de enxergar; e a música de Alexandre Desplat, que cria algo sóbrio e plenamente a serviço da história, sem inventar bobagens musicais e querer chamar atenção para si. Há, inclusive, um momento importante de passagem suave e progressiva de uma cena de silêncio para uma composição épica de ataque que chega e se recolhe na hora certa.

Ao narrar a história dos vencidos e dos dominados, Herói de Sangue expande a nossa visão para as relações de poder que tivemos ao longo da História e nos convida a pensar sobre o que faremos com esta memória, com estas informações, com a possibilidade de acertar social e politicamente. Basta saber se esse pensamento encontra solo fértil em tempos como os nossos. Até agora, a guerra tem sido um ato de repetição estúpida da humanidade. E a cada novo filme sobre um conflito armado e a cada nova reflexão sobre a destruição que eles têm o poder de trazer, a grande pergunta da civilização ecoa: até quando?

Herói de Sangue (Tirailleurs) — França, Senegal, 2022
Direção: Mathieu Vadepied
Roteiro: Olivier Demangel, Mathieu Vadepied
Elenco: Omar Sy, Alassane Diong, Jonas Bloquet, Bamar Kane, Alassane Sy, Aminata Wone, François Chattot, Clément Sambou, Oumar Sey, Léa Carne, Aristide Tarnagda, Indjai Caramo, Souleymane Bah, Jordan Gomis
Duração: 98 min.

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