Home QuadrinhosArco Crítica | Homem-Aranha: Caído Entre os Mortos

Crítica | Homem-Aranha: Caído Entre os Mortos

por Giba Hoffmann
1,5K views

Contém spoilers referentes ao arco!

É seguro afirmar que o sucesso do selo Marvel Knights, criado na virada do milênio por Joe Quesada e Jimmy Palmiotti, moldou muito dos caminhos criativos que a Marvel seguiria pela próxima década. Tratava-se de trazer roteiristas e desenhistas de primeira linha do cenário indie, propondo-os criar com experimentação e fora da constrição da cronologia, inicialmente com personagens de segunda linha e, mediante o sucesso, expandido-se para títulos maiores da editora. O impacto editorial da empreitada foi tamanho que em pouco tempo Quesada ocupava o cargo de editor-chefe da empresa, empurrado por uma série de escolhas eficientes tanto no âmbito criativo quanto comercial, muitas delas ligadas ao selo. A escalação de Mark Millar para roteirizar uma série limitada do Homem-Aranha dentro do selo consiste em um ótimo exemplo desses sucessos.

No começo dos anos 2000, entre um excelente trabalho em Ultimate X-Men e Ultimate Quarteto Fantástico e a literal obra-prima Os Supremos, Mark Millar representava uma das maiores forças criativas no ramo super-heroico da nona arte. Caído Entre os Mortos consiste na abordagem do roteirista ao universo aracnídeo, representando o primeiro ano da nova revista mensal do Cabeça de Teia, Marvel Knights Spider-Man, cujo propósito seria o de rotacionar equipes criativas anualmente, criando arcos fechados com as características particulares do selo: experimentação, uso flexível da cronologia e um tom mais sério e pedregoso – algo como um intermédio entre a linha tradicional e os materiais de Marvel Max. Porém se engana o leitor que pensa que Millar, devido ao estilo sisudo-espetaculoso de escrever quadrinhos de super-herói, possa ter dificuldade em acertar um tom interessante para o aracnídeo, que se localiza num ponto difícil entre o drama e aventura comédica. O que acompanhamos aqui é uma abordagem segura e precisa de muitos dos elementos centrais do herói, dos monólogos internos de culpa e sofrimento até as cenas de humor, passando pelos rápidos encontros com outros grandes personagens do panteão da Marvel, tudo aqui soa bastante convincente e não estaria fora de lugar na revista mensal do personagem.

Millar se sente tão confortável com a proposta que não parece se guiar necessariamente por nenhuma dessas diretrizes, trazendo seu foco imediatamente para contar uma história clássica do Homem-Aranha, com alguns toques de seu estilo especial no que tange ao humor e à violência. Inclusive é notável que o autor insira a trama seguramente em meio às bases erguidas pela fase de J. Michael Straczynski no carro chefe The Amazing Spider-Man (Volume 2), tirando proveito total de um status quo com Peter Parker lecionando no segundo grau da Escola Midtown e com Tia May já tendo plena e assumida certeza a respeito da identidade secreta de Peter. O maior triunfo do formato através do qual o autor assume a revista aqui é justamente a possibilidade de planejar a história como uma minissérie fechada, dentro da qual temos três sub-arcos intimamente ligados entre si, em um ritmo que, embora não seja perfeito de ponta a ponta, mantém-se excepcionalmente bem.

Trata-se de uma história que reedita muitos dos conflitos tradicionais do Homem-Aranha: um plano mirabolante do Duende Verde, uma nova encarnação do “Sexteto” Sinistro, Tia May raptada e possivelmente morta, perseguição pública esquentada pelo Clarim Diário, o simbionte de Venom fora de controle querendo devorar seu antigo hospedeiro, dramas mundanos e familiares, morte e culpa, culpa e morte. Em um espaço de doze edições, é notável que Millar consiga encaixar tão bem tantas peças, e fazê-las tomar forma de roteiro de maneira orgânica e envolvente. Exceto talvez durante as duas edições que tratam da batalha contra o novo Venom, onde a trama perde um pouco do momentum, falamos aqui do tipo de edição que praticamente obriga o leitor a seguir com a próxima, normalmente através de uma arte de página inteira em um cliffhanger instigante.

A escolha de Terry Dodson para a arte, sempre complementada pela finalização de Rachel Dodson, se mostra especialmente adequada desde a primeira edição, que começa com um combate violento entre o Aranha e o Duende Verde, em pleno domingo de manhã, após o antigo nêmesis do herói ter feito uma igreja de refém, demandando a rendição do aracnídeo e a possibilidade de estripá-lo em rede nacional. A batalha impressiona pelos visuais que conseguem balancear o detalhamento da arte digitalmente acabada com um estilo simples e inegavelmente quadrinesco.

Cada uma das cenas de ação retratadas pelos Dodsons passa a impressão de grande escala. São especialmente épicas a batalha inicial contra o Duende Verde e o confronto contra Abutre e Electro, onde vemos Peter levar uma daquelas sovas homéricas que só o Homem-Aranha é capaz de ostentar com tanto orgulho. Também temos Frank Cho cobrindo os deveres de arte por duas edições, nas quais o artista faz um trabalho à altura do restante, em especial demonstrando cuidado em representar as fisionomias dos personagens de forma fiel às versões dos Dodsons, além de uma arte final que faz a transição entre os desenhistas se dar de froma bastante suave, raridade que conta como um ponto a favor na consistência da arte. Em contraste com o dinamismo da arte dos Dodsons, suas cenas de ação são mais estáticas e dão a impressão de takes mais longos, o que serve bem à edição onde Peter enfrenta um ensandecido Doutor Octopus fugitivo no centro da cidade. De resto, Cho se encarrega de cenas mais longas e mais focadas em diálogo, o que também contribui nesse quesito.

Pouco tempo após a prisão do Duende, Peter se vê as voltas com a terrível notícia de que o túmulo de Tio Ben fora violado, apenas para poucas horas depois, enquanto investigava o crime, receber a ligação de uma figura misteriosa que ameaça o heroi e afirma estar com Tia May. A primeira edição acaba com o desespero do apartamento novo de Tia May completamente detonado e vazio. Essa mensagem nefasta é o que marca a jornada do herói nas próximas onze edições, durante as quais acompanhamos sua investigação. A narrativa brinca com as expectativas do leitor, que obviamente suspeita de cara que se trate de um plano de retaliação por parte do recém-aprisionado Osborn. As cenas em que vemos Peter interrogar o vilão em sua cela na Ilha Riker são ótimas, e a caracterização de Norman é bastante precisa e acertada. De beco sem saída em beco sem saída, acompanhamos o Aranha fazendo o que pode para protejer Mary Jane e tentar descobrir a respeito do paradeiro de Tia May.

É notável a capacidade do roteirista em pontuar edições de forma que mantenham muito de seu formato relativamente “auto-contido”, ou seja, que pareçam mesmo edições de quadrinhos no sentido clássico do termo, com uma história relativamente completa por edição, em especial nos dois primeiros terços do arco. Seu maior mérito é justamente a forma como consegue ramificar uma série de subtramas a partir da trama central do sequestro, para depois reuni-las na reta final de uma forma dramática e bastante satisfatória. Nenhum acontecimento é gratuito e praticamente todos os personagens que são trazidos para o palco tem sua importância no desenrolar da história, à exceção de alguns dos supervilões que aparecem ao final da edição #10 como reforços aos Doze Sinistros de Norman Osborn (o que há de errado com “Duodeceto Sinistro”, caros tradutores brasileiros?). Nesse quesito, destaque para a participação de Mary Jane e Felícia Hardy, bastante carismáticas e literalmente salvando a vida de Peter mais de uma vez ao longo de sua provação. Felícia em especial é trazida de forma um tanto quanto inesperada, e utilizada de forma bastante efetiva, o que muitas vezes é difícil para a personagem. Temos ainda uma subtrama divertida com J. Jonah Jameson recebendo patrocínio para uma campanha para revelar a identidade de Peter, que além de ser responsável por três mortes terríveis de inocentes ao longo da história, em um toque do conhecido humor negro de Millar, acaba com um final divertido porém um tanto quanto inconsequente.

Embora a trama central seja a de um mistério, a história guarda surpresas e valor de reprise mesmo para o leitor que já se assegura desde o início ou já sabe de leituras anteriores se tratar tudo de um grande plano bolado por Norman Osborn muito antes de ser aprisionado. É justamente no desfecho da trama, com a reunião do Duodeceto Sinistro, que fica claro um lado da história até então inesperado: o que acompanhamos ao longo deste mês conturbado na vida de Peter foi algo como um remake estendido da clássica primeira aparição do Sexteto Sinistro. A versão de Osborn ganha da de Octopus aqui não apenas pela força bruta de combate (já que conta com o dobro de membros superpoderosos), mas pela execução muito mais eficaz do plano de “ataque por etapas”, idealizado por Octavius na aventura clássica sem tanto sucesso. Aqui os ataques vêm dos mais diversos lados, abalando não apenas o físico mas também o psicológico do herói de maneiras diversas.

Acompanhando os monólogos internos de Peter, desde a segunda edição quando o vemos despachar Mary Jane para que fique em segurança, somos testemunha da angústia do herói que vem recebendo ataques inesperados e muito precisos. A violação do túmulo de Tio Ben, o sequestro de Tia May, a caçada patrocinada por sua cabeça, o envolvimento com os rolos criminosos do Coruja com Electro e Abutre (em meio ao qual temos a excelente subtrama com o neto adoecido do Abutre precisando de dinheiro para o tratamento) – toda a sequência de eventos que acompanhamos (e muito do que não é mostrado mas apenas aludido, como o embate contra um Lagarto provavelmente controlado pelos asseclas de Osborn) consiste em um tremendo corredor polonês no qual vemos nosso herói ir gradativamente se enfraquecendo, pronto para cair na armadilha final de Osborn: ser morto por suas mãos após libertá-lo da prisão.

Com tudo isso em jogo, a trama ainda é capaz de nos presentear com dois coringas responsáveis por mudar todo o rumo da história: Eddie Brock decidindo leiloar o simbionte de Venom e a conspiração de lobbystas de alto escalão que desejam eliminar Norman Osborn como forma de queima de arquivo, que resulta em um Doutor Octopus mentalmente condicionado a assassinar o magnata. Ambos marcam o desfecho da história de forma significativa, e também acabam por estruturar alguns dos elementos mais marcantes da saga para a cronologia geral do Teioso. De um lado temos a irônica aparição de um Doutor Octopus que, mesmo mentalmente incapacitado e sem controle de suas ações, consegue impedir Osborn de ter sucesso onde ele falhou e aniquilar o Aranha com uma versão definitiva de seu time de supervilões, o que conta pontos para a conhecida rivalidade dos dois maiores vilões da galeria aracnidea. Para além disso temos um arco importantíssimo para Mac Gargan, que não apenas se revela como o responsável pelo sequestro de Tia May, aparentemente em posição de comando das operações de Osborn enquanto este estava atrás das grades, mas que acaba recebendo o simbionte após a morte de Angelo Fortunato, rejeitado pelo traje alienígena. Com isso, Gargan sobe de rank na galeria de vilões do Aranha e passa a encarnar uma interessante versão de Venom, totalmente selvagem e desprovida de quaisquer escrúpulos, sem possuir ao menos a moral fraca e deturpada da versão de Eddie Brock. Além de representar uma ameaça considerável (ainda que a contragosto de Norman, que não gosta de elementos inesperados no meio de seus planos), o novo Venom acaba preso, porém com motivação renovada para voltar a infernizar Parker, agora que conhece sua identidade.

A forma como a narrativa trabalha Osborn faz uma reutilização bem justificada do clichê “Norman Osborn estava por trás de tudo”. Nos diálogos com um aterrorizante Mac Gargan, que cumpre aqui, antes de receber o simbionte, o papel de ser uma espécie de Doug Stamper para o Frank Underwood de Norman Osborn, chantageando Parker e peitando-o sem a armadura de Escorpião em uma pegada de “nada a perder”, temos uma tentativa de explicação a respeito das finanças por detrás dos super-vilões que infernizam a carreira do herói. Conta a favor da história o fato de que ela não dependa deste ponto específico do roteiro para se sustentar, já que a ideia, embora impressione em uma leitura mais superficial, não é trabalhada bem o suficiente para se encaixar com a cronologia tradicional do herói. Trata-se da sugestão de que todo o super-vilanismo é patrocinado por poderes financeiros interessados em travar uma espécie de guerra ideológica contra os super-heróis, conceito similar ao que é trabalhado por Brian Michael Bendis em Guerra Secreta. Lançando bases para uma releitura da origem do Duende Verde (cuja Oscorp seria então nada mais do que intermediária nesse processo – não paenas lavando dinheiro como desenvolvendo tecnologias voltadas para este fim), o ponto não é trabalhado de forma suficiente aqui, contribuindo mais com a abertura para futuras histórias do que para o arco em questão.

A batalha final se dá em tom de escalada, com a reunião de doze terríveis inimigos de Peter (mais um imprevisível Octopus fora de si) e a necessidade de salvar Mary Jane das garras de um Norman totalmente tresloucado. A chegada da “cavalaria”, na forma de três Vingadores mais o Quarteto Fantástico, convocados após um pedido de ajuda de MJ, configura um momento épico, sucedendo a breve entrega de Peter que considera se entregar a uma investida final e morrer lutando. Infelizmente o ritmo se acelera demais aqui, com pouco foco nas batalhas dos heróis recém-chegados, sendo que mal visualizamos bem a formação da equipe tenebrosa de Osborn e de que forma enfim o último combate se sucede. Após o emocionante resgate de Tia May (que passou UM MÊS dentro de um caixão – OK, ligada a oxigênio e entubada com reméditos potentes etc, mas mesmo assim – difícil de engolir essa hein, Sr. Millar?), temos um belo e otimista encerramento, com Peter grato por ter conseguido salvar Tia May e reconhecendo o papel central de Mary Jane, Felícia Hardy e de seus colegas super-heroicos (que no começo da história apenas o fizeram passar dificuldades, como na edição hilária em que ele tenta conseguir ajuda dos Vingadores) no processo. Para pontuar o festival de gratidão, temos a assombrosa carta na qual Norman Osborn agradece a Peter pelo conflito – e pede desculpas por qualquer mal-entendido.

No todo, Caído Entre os Mortos se prova uma excelente história para o Aranha, com toneladas de conteúdo bem trabalhado tanto em roteiro quanto em arte, ritmo balanceado e bom uso de todo o elenco. Sinalizando um bom momento do herói em sua fase pré-pacto, temos aqui um Peter decididamente mais maduro em uma de suas maiores provações, lidando diretamente com seu passado doloroso e tentando resolver tudo sozinho, mas percebendo que, no final contas, é sortudo à própria maneira. Pecando apenas por uma leve perda de fôlego no sub-arco de Venom e por um final que poderia se utilizar de mais uma edição para um combate derradeiro mais satisfatório com todos os vilões que acabam dando as caras, sem dúvida temos aqui um Homem-Aranha muito próximo de sua melhor forma.

Homem-Aranha: Caído Entre os Mortos (Marvel Knights Spider-Man: Down Among the Dead Men)
Nos EUA: Marvel Knights Spider-Man (v1) #01 – #12 (Junho/2004 até Maio/2005)
No Brasil:
 Homem-Aranha (Primeira Série, Panini) #41-#50 (Maio/2005 até Fevereiro/2006); Coleção Definitiva Marvel Homem-Aranha (Salvat) #1 – “Caído Entre os Mortos” e #6 “Herói da Resistência”
Roteiro: Mark Millar
Arte: Terry Dodson, Frank Cho
Arte-final: Rachel Dodson, Frank Cho
Cores: Laura Martin, Ian Hannin
Letras: VC’s Cory Petit (EUA) Valéria Calipo & Tomás Tropmair  (Brasil)
Capa: Terry Dodson, Rachel Dodson
Editoria: Axel Alonso, Joe Quesada
Páginas: 276

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais