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Crítica | Instinto de Nacionalidade, de Machado de Assis

Uma análise apurada do escritor para os rompantes de nacionalidade na literatura romântica do século XIX.

por Leonardo Campos
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Em 1873, Machado de Assis publicou, pela primeira vez em um jornal, o ensaio Instinto de Nacionalidade, um documento basilar para os estudos literários daqueles interessados na história das Letras em nosso país, bem como aqueles que estão inseridos nas dinâmicas acadêmicas em torno da literatura brasileira do século XIX e seus desdobramentos. Neste texto, o escritor vinculado ao Realismo no Brasil aborda a complexidade do sentimento nacional brasileiro, refletindo sobre as nuances da identidade e da cultura no contexto de um país que buscava sua própria definição no cenário mundial, tendo a insistência de alguns escritores, dentre eles, José de Alencar, na questão do indianismo e do regionalismo como projeto para forjar uma nação ainda em processo de desenvolvimento, com poucos anos de independência de Portugal.

Neste que é considerado o seu texto crítico mais famoso, Machado de Assis reflete sobre o que define um escritor como representante de seu país, tema que se tornaria um ponto central da crítica à sua obra ao longo dos anos. Publicado no jornal Novo Mundo, o texto com a tessitura cheia de estilo próprio e linguagem acessível, aborda a produção literária no Brasil antes da importante transformação de estilo que o autor protagonizaria a partir de 1880, com o lançamento de Memórias póstumas de Brás Cubas. Em suas análises, tanto neste artigo quanto em A Nova Geração, publicado na Revista Brasileira em 1879, Machado enfatiza que a verdadeira genialidade literária não se limita ao nacionalismo nem à descrição de aspectos típicos da terra natal. O autor defende que o escritor de talento deve formar sua identidade literária não apenas através do nacionalismo, mas também pela busca de uma literatura mais autêntica e independente. Ele menciona a relevância do instinto de nacionalidade presente nas obras contemporâneas, mas ressalta que a avaliação das condições históricas para o desenvolvimento de uma nacionalidade literária é complexa e ultrapassa suas capacidades. No geral, Assis considera que seu principal objetivo é reconhecer o desejo coletivo existente de criar uma literatura que transcenda limitações regionais, almejando uma maior autonomia criativa.

O texto aborda a crítica de Machado de Assis ao nacionalismo excessivo e à imitação dos modelos românticos europeus na literatura brasileira de sua época. Ele observa que a produção literária estava limitada ao “passado ultrapassado”, bem como muito restrita a uma visão distorcida da realidade brasileira. Para Machado, essa abordagem não contribuía para o desenvolvimento de uma literatura nacional autônoma, mas, ao contrário, prolongava tradições obsoletas. Nesse sentido, ele propõe a necessidade de uma nova independência literária, enfatizando a importância de se afastar de modelos arcaicos e buscar uma representação mais fiel e criativa do que realmente se passava no Brasil. O autor de Dom Casmurro, A Mão e a Luva e Quincas Borba sugere que a literatura deve ser um reflexo do tempo e contexto do autor, enfatizando que o escritor deve ter uma espécie de “sentimento íntimo” que o mantenha conectado à sua sociedade, mesmo ao tratar de temas distantes. Para que se alcance essa independência literária, é essencial promover um diálogo profundo sobre a identidade nacional, explorando novos elementos que possam enriquecer a produção literária.

Assim, a proposta de Machado de Assis é uma chamada à ação para que os escritores brasileiros se desapeguem das influências europeias e se engajem em uma criação literária que dialogue mais diretamente com a experiência e a realidade do Brasil. Sendo assim, ele defendia um desejo de criar uma literatura mais independente, observando que a produção literária da época já mostrava uma inclinação para temas que refletissem a cultura e a identidade do Brasil, o que ele chamou de “cor local”. Embora reconhecesse o valor do índio como tema literário, explorado por autores como Gonçalves Dias e José de Alencar, enfatizava que a verdadeira expressão da brasilidade ia além das representações geográficas ou étnicas. Em suma, a essência da literatura brasileira estava nas vivências e sentimentos profundos do povo, e não nas descrições superficiais da diversidade natural ou cultural.

Machado de Assis também alertava que a busca pela verdadeira identidade literária brasileira precisava de profundidade e reflexão, desafiando a ideia de que a nacionalidade se manifestava em aspectos visíveis, como as paisagens ou tradições externas. Ele enfatizava que a brasilidade não se realizaria através de superficialidades, como o carnaval, mas sim por intermédio das emoções e experiências interiores dos cidadãos brasileiros. O autor ainda advertia que a compreensão da identidade nacional seria um processo longo e complexo, e essa constatação se mantém atual, refletindo a dificuldade contemporânea em definir de maneira clara a origem, a natureza e o futuro do Brasil, evidenciando que a jornada em busca da verdadeira independência nacional ainda não foi cumprida.

Por meio desse texto, Machado de Assis nos permite debater que essa mistura de origens não apenas enriqueceu a cultura nacional, mas também gerou um dilema identidade. Esse “instinto de nacionalidade” é uma busca intrínseca, quase instintiva, pelo pertencimento a uma nação, uma necessidade de se afirmar como parte de um todo que, por sua natureza, é múltiplo e muito mais complexo que os projetos literários que se desenvolviam até então. Suas colocações também permitem que possamos refletir a forma como a cultura e a literatura brasileiras deveriam ser construídas. Para ele, o papel do escritor é fundamental na construção dessa identidade nacional. O autor sugere que é à literatura que cabe a tarefa de celebrar e explorar as várias camadas que constituem o ser brasileiro. Assim, a literatura não é apenas um reflexo da sociedade, mas um agente ativo na formação da consciência nacional.

Ler Instinto de Nacionalidade é compreender também, trazendo outro ponto importante da nossa relação entre o passado e o presente. O contexto de Machado de Assis e José de Alencar, com respingos ainda no século XXI, era de um pensamento que ainda carregava fardos do colonialismo e das desigualdades históricas, que ainda estavam presentes nas interações sociais cotidianas. Essa reflexão leva o autor a propor que a nacionalidade não deve ser entendida como uma herança estática, mas sim como uma construção dinâmica, capaz de evoluir e se transformar ao longo do tempo. Ler esse texto que tem em média sete páginas nos faz coloca diante da importância, para os escritores da época e os pensadores do presente, da necessidade de um diálogo constante sobre a identidade nacional, destacando que a compreensão do Brasil exige uma visão crítica sobre suas raízes históricas e sociais. O ensaio nos convida, enquanto leitores críticos, a refletir sobre nossas próprias percepções de nacionalidade e pertencimento, instigando uma autoanálise que se estende para além da literatura, atingindo aspectos da vida cotidiana e da convivência social.

E, pensando em dinâmicas contemporâneas de ilação com o texto do século XIX, que foca na questão da nacionalidade como ponto de partida para o que era produzido na literatura em consonância com nosso contexto histórico, deixo por aqui um questionamento que me veio ao reler esse clássico da crítica literária brasileira: o nacionalismo exacerbado, das páginas da literatura, pode ser visto numa observação panorâmica com otimismo ou a nossa nação deixou de lado o sentimento de pertença em seu sentido mais teórico para viver rompantes de nacionalidade distorcem patriotismo com ódio, violência e comportamentos primitivos? O nacionalismo, em sua essência, é a identificação e valorização da nação enquanto um grupo que compartilha uma cultura, língua, e história comuns. No entanto, quando esse sentimento se transforma em uma versão exacerbada, é frequente que ele seja alimentado por uma retórica que exclui e marginaliza os que são percebidos como “outros”.

No contexto brasileiro, isso pode se manifestar por meio de discursos que promovem um ideal de “pureza nacional”, que ignora a rica diversidade étnica e cultural que caracteriza a sociedade brasileira. Esse tipo de nacionalismo pode gerar um ambiente de hostilidade em relação a imigrantes, minorias étnicas e comunidades indígenas, reforçando estigmas e preconceitos que já existem na sociedade. Além disso, o nacionalismo exacerbado pode levar à incitação de sentimentos extremistas, que, por sua vez, minam os fundamentos da democracia. Ilustrações para isso: aumento da intolerância política, processos que tiram a legitimação de opositores e a promoção de atos de violência. Historicamente, países que experimentaram um nacionalismo exacerbado em momentos de crise, como a Alemanha, na década de 1930, nos mostraram que essa ideologia pode servir como um terreno fértil para o extremismo e a violência. No Brasil contemporâneo, a polarização política tem se acentuado e, em alguns casos, a retórica nacionalista é usada por grupos para justificar atos que vão contra os princípios democráticos. Basta olhar os absurdos do horripilante dia 08 de janeiro de 2022. Não preciso nem comentar.

Outro aspecto preocupante do nacionalismo exacerbado é o seu papel na manipulação das narrativas históricas. O uso seletivo da história para promover uma visão idealizada do passado pode levar a uma negação dos conflitos e das dificuldades enfrentadas por diversas comunidades no Brasil. Esse revisionismo histórico, muitas vezes alinhado a ideologias extremistas, promove uma narrativa que não apenas distorce a realidade, mas também deslegitima as lutas por direitos e reconhecimento de grupos marginalizados, como quilombolas e indígenas. A linha tênue entre o nacionalismo e o extremismo pode ser observada nas formas em que as ideologias são apresentadas e aceitas pela sociedade. Enquanto um nacionalismo saudável pode promover um senso de pertencimento e solidariedade, o extremismo se manifesta quando tal pertencimento é baseado na exclusão e na vontade de silenciar vozes dissonantes. A aceitação de discursos que incitam a violência e o ódio, sob o pretexto do nacionalismo, evidencia como a transformação de um conceito positivo em uma ferramenta de opressão e divisão pode ocorrer de maneira insidiosa. Retomar Machado de Assis e seu Instinto de Nacionalidade me fez refletir sobre tudo isso. Claro que, salvaguardadas as devidas proporções de seus respectivos contextos.

Nesse sentido, se pergunte: há limites para o sentimento de pertença na dinâmica do patriotismo?

Instinto de Nacionalidade (Brasil, 1873)
Autor: Machado de Assis
Editora: Ática – Série Princípios.
Páginas: 7

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