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Crítica | Justiça 2

A arbitrariedade da lei num panorama de personagens acometidos pela justiça cósmica.

por Leonardo Campos
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Na análise de Justiça (2016), trouxe alguns pontos que continuam presentes na retomada da série, sete anos depois da sua primeira versão. Criada por Manuela Dias, a narrativa seriada em questão trouxe dramas reais, adaptados para a dramaturgia, oriundos de uma longa pesquisa da profissional que pesquisou, leu e entrevistou várias fontes para construir o argumento e entregar um planejamento de arcos dramáticos para os roteiristas desenvolverem aquilo que os realizadores chamaram de dramaturgia de rua, um recurso que mesclou elementos documentais com o melhor da estética do cinema contemporâneo. Aqui, saímos do Recife e embarcamos nos caminhos pavimentados pelos personagens de Ceilândia, no Distrito Federal, espaço narrativo onde a justiça se faz plena para poucos, muitas traições e reviravoltas dominam cada ponto do enredo, numa caminhada onde não sabemos exatamente o que pode acontecer com as figuras ficcionais, tanto as protagonistas quanto as coadjuvantes.

Ainda com a abertura criada por Alexandre Romano, Flavio Mac Menezes e Christiano Calvet, um recurso fundamental para composição geral do programa, se modifica ao longo dos 28 episódios desta sequência, cada unidade de Justiça 2 emociona, revolta e envolve o espectador, mesmo que saibamos que dramaticamente, a continuidade da série se perdeu, talvez por falta de uma boa direção, ou então, pela aposta em longos episódios. Com as mesmas escolhas estéticas da produção antecessora, aqui acompanhamos quatro histórias assombrosas, intensamente humanas, numa demonstração da ambivalência de cada pessoa que gravita em torno de nossa existência. Há, desta vez, uma aposta mais novelesca em potencializar o vilão e colocar alguns numa posição de “coitados”, outra escolha equivocada dos que escreveram a nova jornada. Aqui, é preciso esquecer a lisura dos códigos que dominam a nossa legislação. Na maioria dos casos, os ideais de justiça tradicionais são deixados de lado para o estabelecimento da justiça dos homens, por vezes, sádica, sangrenta, impiedosa e vingativa.

Escrita por Manuela Dias, em parceria com Walter Daguerre e João Ademir, os episódios dessa nova empreitada foram comandados por Ricardo França, Mariana Betti e Pedro Peregrino, tendo Gustavo no posto de diretor artístico. Todas as quatro histórias revelam dramas profundos. Na história de Baltazhar Gomes da Silva (Juan Paiva), temos um jovem negro que trabalha como motoboy e, por viver em nosso país, utópico no que tange aos meandros da democracia racial, é acusado de assaltar o antigo local onde trabalhava, um restaurante comandado por Nestor (Marco Ricca) e Silvana (Maria Padilha). Ele é um dos que passam sete anos encarcerado injustamente, numa situação catalisadora de dor para a sua avó e namorada. Diferente da inocência do jovem, temos a jornada de Jayme (Murilo Benício), dono de um proeminente mercado na cidade, preso depois que a sua sobrinha Carolina (Alice Wegmann) resolve quebrar o silêncio e revelar que foi estuprada diversas vezes pelo membro familiar. Ao tomar tal decisão, a jovem cria uma cisão na família, financeiramente dependente do inescrupuloso tio.

Nos primeiros episódios, a história de Geiza Lima (Belize Pombal) foi uma das que mais mexeram comigo enquanto espectador. Ao aniquilar a vida do infernal traficante Renato (Filipe Bragança), ela tem a sua vida na pobre comunidade de Sol Nascente transformada numa jornada de fugas, incertezas e medo, principalmente depois de ser presa e deixar a filha adolescente, Sandra (Gi Fernandes), sozinha do lado de fora do cárcere. Para sobreviver, a menina aceita um trabalho com Nestor, agora um político proeminente, se tornando “laranja” em processos de corrupção que lavam dinheiro em quantidades caudalosas. Esse envolvimento vai trazer ainda mais problemas depois que a mãe enfrenta a sua sentença. E, por fim, temos a curiosa história de Jordana (Paola Oliveira), uma empresária musical que descobre não ser filha única e elimina o seu meio-irmão ainda no enterro de seu pai, tendo ajuda do marido Egisto, interpretado por Marcello Novaes. Ao tentar eliminar o cadáver, o esposo dedicado é surpreendido pelo assalto de Milena de Jesus (Nanda Costa), jovem que comete um crime, mas é sentenciado por outro, pois a polícia encontra no carro roubado o corpo de um homem assassinado.

Assim, as histórias se cruzam o tempo inteiro, com os personagens revelando tudo que há de bom e ruim em suas personalidades completamente humanas, isto é, imperfeitas.

O que se percebe, em meu ponto de vista, é a arbitrariedade da lei em uma cidade tomada pela corrupção em zonas abissais, eclodindo em um tecido social onde o networking se faz essencial para garantir escapadas diante dos atos mais hediondos. Interessante que, filosoficamente, Justiça 2 flerta com questões em torno da lei do retorno, do popular “aqui se faz aqui se paga”, em linhas gerais, daquilo que alguns chamam de justiça cósmica, um conceito que tem fascinado filósofos e pensadores ao longo dos séculos, oferecendo uma perspectiva única sobre a natureza do universo e a moralidade inerente a ele. O entendimento desse conceito, bastante perceptível em Justiça 2, vai além das noções tradicionais de justiça humanas, adentrando o âmbito metafísico e transcendental.

Em linhas gerais, a justiça cósmica sugere a existência de um princípio universal de equilíbrio e ordem que governa o nosso universo. Dessa maneira, caro leitor, ela nos apresenta a ideia de que o universo opera de acordo com leis morais imutáveis, recompensando o bem e punindo o mal de forma inevitável e incisiva. Essa concepção promove a crença de que, em última análise, a justiça prevalecerá e cada ação terá suas consequências inevitáveis, independente das circunstâncias terrenas. Basta pensar no aprisionamento da personagem de Maria Padilha. Reconheceu um inocente em um assalto, devastou a vida de uma pessoa, tentou se redimir, mas comeu aquilo que no popular chamamos de “o pão que o diabo amassou”.

Versar sobre esta temática é também dialogar com outra perspectiva filosófica: a ideia da Lei do Retorno, também conhecida como “Lei da Causa e Efeito” ou “Karma”, um conceito profundamente enraizado em diversas tradições espirituais e filosóficas ao redor do mundo, inclusive, no território brasileiro. Essa crença sugere que as ações de um indivíduo, sejam boas ou más, eventualmente retornarão a ele de alguma forma, criando um ciclo de consequências que reflete as intenções e energias emitidas. No âmbito filosófico, a evocação da Lei do Retorno traça reflexões sobre natureza da moralidade, o livre-arbítrio e a já mencionada justiça cósmica. Ao ponderarmos sobre esse conceito, somos confrontados com a responsabilidade inerente a nossas escolhas e a compreensão de que nossas ações têm um impacto que vai além do momento presente. A ideia de que nossas ações influenciam diretamente o curso de nossas vidas e do mundo ao nosso redor nos convida a refletir sobre a noção de responsabilidade moral. Basta observar o personagem de Danton Mello, indiretamente responsável pela trágica jornada da adolescente Sandra, encerra a sua jornada por um caminho totalmente contrário aos seus ideais de moralidade, haja vista a necessidade de se redimir diante de suas ações.

Para encerrar a perspectiva filosófica desses tópicos, a expressão “aqui se faz, aqui se paga” é um ditado popular que reflete a noção de justiça divina ou karma, onde as ações de uma pessoa, sejam elas boas ou más, retornam para ela no futuro. Esse princípio ético transcende fronteiras culturais e temporais, sendo encontrado em diversas tradições filosóficas e religiosas ao redor do mundo, como podemos ver na saga de Kellen (Leandra Leal). Ela é divertida, tem alguns dos melhores diálogos da série, mas precisamos lembrar que mesmo com seu carisma e posição de alívio cômico diante dos pesados dramas apresentados a cada episódio, a sua personagem foi uma das catalisadoras da descida aos infernos de Fátima, na primeira temporada de Justiça. Cúmplice do namorado, apoiou a implantação de drogas na casa de uma inocente e destruiu uma família que precisou de quase uma década para se reorganizar. De tão esperta que se acha, foi driblada por Carolina em seu plano de vingança mirabolante, mas eficiente.

No cerne dessa expressão está a ideia de que somos responsáveis por nossas escolhas e comportamentos, e que eventualmente colheremos aquilo que semeamos. Ou seja, nossas ações têm consequências, e o que fazemos hoje influenciará nosso futuro. Isso ressalta a importância da ética, da responsabilidade e da consciência em nossas interações com o mundo e com as pessoas ao nosso redor. No contexto moral, a expressão “aqui se faz, aqui se paga” nos lembra da necessidade de agirmos de forma justa, bondosa e compassiva, pois as repercussões de nossas ações podem retornar para nós de maneira positiva ou negativa. Dessa forma, ela serve como um lembrete poderoso para cultivarmos virtudes como a honestidade, a generosidade e a empatia em nossas vidas. É como o caso de Kellen, bem como de tantos outros personagens.

Estaria Luara correta ao desejar vingança ou vantagens por guardar a mochila de Diógenes por tantos anos, um simples objeto que continha documentos cruciais para selar o destino de Jordana? Além disso, para fechar esta ideia que permeia a estrutura dramática de Justiça 2, essa expressão também nos convida a refletir sobre a natureza cíclica da vida e das relações humanas. Assim como um ciclo, nossas ações e escolhas se repetem, criando padrões que moldam não apenas nosso destino individual, mas também o das comunidades e da sociedade como um todo. Nesse sentido, “aqui se faz, aqui se paga” ressalta a interconexão entre nossas vidas e a importância de agirmos com integridade e sabedoria, algo que infelizmente não podemos aplicar na prática como a teoria preconiza. Milena, inicialmente ambiciosa, consegue o seu plano de se tornar uma estrela, mas diante do desfecho misterioso, será que Jordana permitirá que a sua companheira continua gozando dos privilégios ofertados ou se vingará pelo assassinato de seu marido, morto num capotamento que segundo a perícia, foi ocasionado por uma sabotagem no automóvel, algo que nós, espectadores, sabemos ter sido ação de Milena.

É importante ressaltar que a interpretação dessa expressão não deve ser entendida de forma literal ou simplista. Nem todas as consequências de nossas ações são imediatas ou visíveis, e o conceito de justiça nem sempre se manifesta de maneira direta ou previsível. O mundo é complexo e cheio de incertezas, e nem sempre recebemos o que “merecemos” de acordo com nossos padrões de moralidade. Foi o que Justiça 2 me fez refletir ao passo que os últimos episódios encerravam os arcos dos personagens. “Aqui se faz, aqui se paga” nos convida a uma reflexão profunda sobre o significado e as implicações de nossas ações. Ela nos lembra da importância de vivermos de acordo com nossos valores mais elevados, mesmo quando as circunstâncias ao nosso redor parecem desfavoráveis. Ao cultivarmos a virtude, a bondade e a compaixão, podemos contribuir para a construção de um mundo mais justo, equilibrado e harmonioso, onde o bem que fazemos reverbera em todas as direções. Mas isso tudo, caro leitor, é bastante complicado de ser colocado na prática, afinal, vivemos num mundo de incoerências.

Mesmo com todos os seus problemas de coesão narrativa, Justiça 2, atropelada por uma edição pouco cuidadosa com a demonstração dos fatos se tornou um sucesso de público e, confesso, a minha programação demarcada no planner toda quinta-feira, a cada feixe de quatro episódios disponibilizados pelo serviço de streaming do Globoplay. A produção demonstra o cuidadoso trabalho dos realizadores em entregar ao público histórias fincadas no real, sem cair em sentimentalismos, naquilo que, salvaguardadas as devidas proporções comparativas, o politicamente mestre contraditório Nelson Rodrigues chamou de A Vida Como Ela É. Com um final repleto de mistério, a produção deixa alguns desfechos em aberto, para que o espectador faça a sua complementação e assim, o material se torne tema para debates. Os envolvidos nesta continuação tinham tudo para apresentar outra obra-prima para o público, mas conseguiram apenas entregar algo bom, que nos dá a sensação de ter potencial para ter sido muito melhor.

Justiça – 2ª Temporada | Brasil, 2024
Showrunners: Manuela Dias
Diretores: Gustavo Fernandez, Mariana Betti, Pedro Peregrino, Ricardo França
Roteiristas: Manuela Dias, Walter Daguerre, João Ademir
Elenco: Juan Paiva, Marco Ricca, Maria Padilha, Luciano Mallman, Jorge Guerreiro, Jéssica Marques, Amir Haddad, Alice Wegmann, Murilo Benício, Júlia Lemmertz, Leandra Leal, Fábio Lago, Giovanni Venturini, Rita Assemany, Adriano Garib, Aramis Trindade, Belize Pombal, Gi Fernandes, Danton Mello, Filipe Bragança, Vinicius Teixeira, Nanda Costa, Paolla Oliveira, Marcello Novaes, Juliana Xavier, Xamã, Tereza Seiblitz, Evandro Mesquita, Alexandre Rodrigues
Duração: 28 episódios – 50 minutos em média cada episódio

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