Depois de desapontar muita gente (não foi meu caso, porém) com Parthenope: Os Amores de Nápoles, Paolo Sorrentino retorna à simplicidade e deixa sua cidade natal pela primeira vez desde A Mão de Deus, localizando La Grazia essencialmente em Roma, no Palácio do Quirinal, sede do governo italiano e residência de Mariano De Santis, presidente fictício criado para o longa que está nos seis últimos meses de seu mandato. Para encarnar o jurista eleito presidente, o cineasta trouxe seu ator parceiro Toni Servillo, que já havia feito o papel de Silvio Berlusconi em Loro 1 e 2, de Sorrentino, filmes reunidos em um só e intitulado, por aqui, de Silvio e os Outros. No entanto, Mariano de Santis, se alguma coisa, é exatamente a antítese de Berlusconi e, diria mais, um dos poucos políticos retratados no Cinema com quem simpatizei e que realmente me comoveu e olha que tenho ojeriza generalizada a políticos (talvez por isso mais do que por qualquer outra razão ele tenha que ter sido fictício…).
Servillo é La Grazia. Sem uma magnífica composição do ator, que faz de seu personagem, que fora um criminalista brilhante, um homem com um exterior inamovível, sólido, que faz jus a seu apelido Concreto Armado, mas com um interior em constante turbilhonamento, o filme, que tem caráter filosófico e faz perguntas que nem sempre consegue ou mesmo quer responder, não se sustentaria. O foco está todo em Mariano De Santis, mesmo que haja uma pequena constelação de personagens a seu redor, seja sua filha e conselheira Dorotea (Anna Ferzetti), sua melhor amiga e confidente Coco Valori (Milvia Marigliano), seu melhor amigo e Ministro da Justiça que quer ser o próximo presidente Ugo Romani (Massimo Venturiello) ou seu fiel e quase magicamente prestativo chefe de segurança Coronel Massimo Labaro (Orlando Cinque), ainda que sua esposa, vista muito de relance em lembranças, seja a grande e onipresente coadjuvante. A sisudez aparente do protagonista é uma casca fina que mal esconde um homem profundamente saudoso de sua esposa que falecera há oito anos, torturado por saber que, há 40 anos, ela o traiu com uma pessoa que ele não sabe e indeciso sobre as últimas grandes decisões que precisa tomar em seu cargo: se assina uma lei que autoriza a eutanásia e se perdoa duas pessoas condenadas por assassinato, uma mulher que esfaqueou o marido abusivo e um homem que estrangulou a esposa com Alzheimer.
Quando mencionei que Sorrentino reverteu à simplicidade, não quis de forma alguma dar a entender que La Grazia é um filme simples, mas sim fiz apenas teci uma comparação com a ambição vista em Parthenope. La Grazia não é simples no sentido negativo do adjetivo, mas sim no foco contemplativo de sua prosa, com as questões prementes que povoam a mente de Mariano, todas elas lidando, de uma maneira ou de outra, com a mortalidade, algo inclusive inferido ao próprio protagonista em seu fim de carreira, podendo ser resumidas na forma como ele encara a vida, tanto a passada, quanto a presente e a que deseja viver em seus últimos dias, com a indagação “a que pertence nossa vida?” flutuando de tempos em tempos ao longo da narrativa, como que para lembrar o espectador do norte da história. No entanto, por ser contemplativo, Sorrentino carrega em diálogos e monólogos por parte de Mariano, o que pode fazer com que a película pese para muita gente, algo compreensível especialmente nos dias atuais em que há pouca paciência para uma conversa mais lenta e compassada. Por outro lado, Sorrentino nunca na verdade deixou de lado esse seu estilo, pelo que seu emprego com mais ênfase, aqui, é algo perfeitamente esperado do diretor e roteirista.
Mas, não me canso de dizer, Toni Servillo é o que faz La Grazia verdadeiramente funcionar a ponto de a duração do filme, mesmo com sua característica mais verborrágica e quase sem nenhum tipo de ação propriamente dita, ter passado em um piscar de olhos para mim (e também para minha esposa ao meu lado, vale dizer), sinal de que o veterano ator campano ainda tem o poder de hipnotizar e emocionar o espectador mesmo quando seu personagem mantém uma séria expressão única que, quando é raramente quebrada, torna-se quase que um evento memorável dentro do longa. A seriedade de Mariano, assim como sua religiosidade, aponta também para seu conservadorismo político, algo normalmente – e não sem razão – ser encarado negativamente nos tempos atuais, parece ser uma cuidadosamente bem construída crítica ao binarismo político, criando quase que a necessidade de rótulos com instruções bem específicas de como agir e de como ser. Reconheço que o clima moderno permite pouco espaço para uma visão mais calma da realidade, mas Sorrentino discretamente faz esse trabalho aqui ao caracterizar seu personagem não como uma figura monotemática, que segue o mesmo caminho sempre independente de outra consideração, mas sim um ser complexo, cheio de dúvidas e de dilemas.
La Grazia – que não teve seu título traduzido para o português na data da presente crítica muito provavelmente em razão dos dois significados que a palavra tem no filme, ou seja, “graça” e “perdão” – é uma obra em que Paolo Sorrentino parece ter construído meticulosamente como um estudo de personagem que apenas um ator italiano atual poderia viver e que o faz maravilhosamente bem, em uma atuação realmente inesquecível. É também um filme arriscado por solicitar simpatia por um político na conjuntura dos dias de hoje e por focar quase que exclusivamente em diálogos, mas o que o cineasta napolitano quer mesmo é que paremos para tomar controle sobre nossas próprias vidas e, talvez, com isso, acumularmos coragem para tomar decisões difíceis sobre nosso cotidiano.
La Grazia (Itália, 2025)
Direção: Paolo Sorrentino
Roteiro: Paolo Sorrentino
Elenco: Toni Servillo, Anna Ferzetti, Massimo Venturiello, Orlando Cinque, Milvia Marigliano, Giuseppe Gaiani, Giovanna Guida, Alessia Giuliani, Roberto Zibetti, Linda Messerklinger, Vasco Mirandola, Rufin Doh Zeyenouin, Guè
Duração: 131 min.