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Crítica | Lenine: EITA

Luta e lembrança.

por Luiz Santiago
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É até difícil processar o fato de que já faz uma década que eu escrevi sobre Carbono (2015), e que, desde então, Lenine dedicou-se exclusivamente a turnês, shows e participações especiais. Uma década sem entrar no estúdio para gravar um projeto completo. Com Lenine, sabemos que existe sempre um grande significado por trás de um novo trabalho, um ímpeto formador, um “fato-gerador” que colabora para as composições e a localização precisa de seu novo conceito no tempo e no espaço. EITA, lançado oficialmente em 28 de novembro de 2025 (o filme teve lançamento promocional três dias antes do disco, em locais selecionados, e funciona como um agregador essencial para a obra, engrandecendo-a. Posso dizer isso porque ouvi o disco primeiro e vi o filme depois, tendo gostado bem mais do projeto após apreciar o lado visual), nasceu justamente desse retorno afetivo, consciente e profundamente enraizado nas memórias, na família e no “espírito do mundo, no momento“.

O curta, dirigido por Lenine, Kabé Pinheiro e Laís Branco, já chama atenção pela maneira como organiza suas imagens e relaciona letras e conexão visual. Nada parece pensado para “explicar” o álbum, duvidando da capacidade do espectador/ouvinte. O filme segue um caminho próprio, com ritmo, textura e construção de um ideal entre estética e música que funciona muito bem. É evidente que existe uma conexão orgânica com cada faixa, mas sem aquela dependência literal (didática, “decifradora de significados“) que costuma empobrecer trabalhos visuais atrelados a discos. Aqui, a relação é mais livre: as músicas e as imagens compartilham espaço, dialogam, mas não brigam para aparecer mais que a outra.

A fotografia percorre o Recife (gosto muito do que os diretores fazem na execução da primeira canção), Rio de Janeiro e São Paulo (através de convidados como Maria Bethânia e Maria Gadú), uma espécie de mapa sentimental para Lenine, já que estas são cidades que moldaram o artista, e não por acaso servem de base para uma parte da atmosfera da curta. Não há tentativas forçadas de construir uma “narrativa total” aqui. O que existe é um fluxo contínuo, que funde o dia a dia com memórias, afetos, detalhes do espaço urbano e reencontros com uma paisagem que, de certa forma, sempre acompanhou a música de Lenine — destaque para o mapa da região Nordeste no chão, as imagens dos filhos e netos na TV, a esposa ouvindo a faixa Meu Xamêgo e o já esperado cenário para a “faixa ambientalista” do projeto. É um olhar que parte do íntimo para o amplo, sem perder delicadeza e sem tirar do público a possibilidade de interpretações e novos significados para o todo.

A escolha da linogravura (técnica de gravura em relevo feita sobre uma placa de linóleo, que depois é usada para imprimir imagens em papel) de Luiza Morgado como capa do projeto já indicava que EITA teria uma costura entre o artesanato e o contemporâneo. O filme simplesmente reafirma essa noção. A direção é consciente da matéria que está explorando; parece partir da intimidade do toque, da observação, da escuta. E, em termos de ritmo, não há pressa. O tempo é pautado com muita precisão por cada atmosfera musical e a transição entre elas é, na maioria das vezes, irretocável. A direção artística de Bruno Giorgi (filho de Lenine), que também assina a arquitetura sonora do disco, é quase uma bússola silenciosa das imagens, organizando o tempo interno entre as faixas e o espaço visual. As músicas, por sua vez, entram de forma muito natural. Confia em Mim é um convite para um passeio e estabelece a temperatura emocional do curta. A faixa-título, Eita, flerta com um “retorno às origens“. Meu Xamêgo traz delicadeza e amor em forma de música e imagem. O Rumo do Fogo, com Maria Gadú, é um dos pontos altos: a canção, que já mistura ancestralidade e tensão ambiental contemporânea, tem imagens que reforçam essa camada, aproximando natureza, urbanidade e uma noção clara de urgência por tudo aquilo que estamos destruindo.

Foto de Família, com Maria Bethânia, desacelera tudo com muita beleza, e me lembrou outra colaboração da dupla, chamada Saudade, lindíssima composição de Chico César e Paulinho Moska. É um momento bonito, porque junta duas forças vocais que entendem perfeitamente o valor da memória e da permanência. Já Malassombro, parceria com Siba, traz densidade ao conjunto, abrindo brechas para sombras, mistérios, lendas e camadas do imaginário nordestino que o filme sabe explorar sem folclorizar (algo percebido até mesmo quando a tradição é o centro da imagem e da canção, como vemos em Boi Xambá). As últimas faixas, Beira; Deita e Dorme; Aos Domingos e Motivo (uma das mais fortes e das minhas favoritas do projeto) encadeiam um desfecho que procura uma sensação de continuidade, como se o musical simplesmente puxasse o espectador para as últimas considerações.

Exceto pela faixa inicial, Lenine: EITA é um filme de cenário único, o que torna tudo ainda mais exigente para os diretores e para a criação de uma produção visual que se justifique e faça jus ao álbum. É um projeto que melhora a audição e que mostra, mais uma vez, a evolução de Lenine ao conceber e divulgar uma novidade. Embora não seja liricamente tão denso e profundo como Chão ou Carbono, EITA não faz feio. É um disco curto, com mensagens diretas e uma pegada íntima, crítica e “pra cima” que só Lenine sabe fazer. Que saudade de um projeto desse homem! Espero, com muito afinco, que ele não demore mais 10 anos para nos trazer o próximo!

Lenine: EITA (Brasil, 25 de novembro de 2025)
Direção: Lenine, Kabé Pinheiro, Laís Branco
Roteiro: Lenine, George Moura, João Müller Moura
Elenco: Lenine, Bruno Giorgi, Alexandre Pontes, Anna Barroso, Tom, Luna, Martin, Rudá, Otto, Maria Gadú, Maria Bethânia, Bongar do Xambá, Siba, Gabriel Ventura
Duração: 34 min.

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