Home Diversos Crítica | “Letter to You” – Bruce Springsteen

Crítica | “Letter to You” – Bruce Springsteen

por Ritter Fan
1,5K views

Rock of Ages, lift me somehow
Somewhere high and hard and loud
Somewhere deep into the heart of the crowd
I’m the last man standing now
(I’m the last man standing now)

Bruce Springsteen nasceu para o mundo – ou, melhor dizendo, ainda somente para os EUA – em 1973, com Greetings from Asbury Park, N.J. que pontuava sua origem em Nova Jersey e apresentava a versão original e ainda sem nome da E Street Band, que já estava formada desde o ano anterior, mas só seria batizada, novamente referenciando a origem geográfica dos músicos, em 1974. Sua carreira não demorou a decolar de verdade com Born to Run, em 1975, álbum que marcaria para sempre seu estilo musical e o line-up de seus shows até hoje em dia. Mas foi mesmo Born in the U.S.A., novamente com título que remetia à sua origem, mas desta vez olhando de fora para dentro, que sua fama explodiu pelo mundo, alavancando seus álbuns anteriores no processo e colocando Springsteen no circuito mundial, algo em que também foi ajudado por sua icônica participação em We Are the World, provavelmente a música mais repetida nas rádios do mundo (e o videoclipe mais reprisado na TV) em 1985.

Corta para 2019 e o cantor e compositor, já com seus 70 anos de idade, lança Western Stars, álbum inspirado por canções pop do sul da Califórnia e que se reveste de um papel de homenagem ao oeste americano. Este foi o primeiro álbum de estúdio de Springsteen em cinco anos, mas, desta feita, sem a E Street Band, sendo que o anterior, High Hopes, com a banda, é fundamentalmente uma coleção de covers e regravações de suas próprias músicas. Portanto, Letter to You é, na verdade, o primeiro álbum de Springsteen com a banda desde 2014, mas, se quisermos ir mais além e contarmos só álbuns de inéditas, nada menos do que desde 2012, com o lançamento de Wrecking Ball, o que o torna automaticamente digno de atenção.

Mais do que isso, Letter to You merece destaque ainda por outros fatores. O primeiro deles é que a composição do 20º álbum de Springsteen é uma preciosidade também, pois, além das obras inéditas que ele compôs depois que conseguiu vencer um bloqueio artístico em 2019, traz à luz três canções que foram escritas originalmente antes do primeiro álbum do artista: If I Was the Priest, Janey Needs a Shooter e Song for Orphans. Não que as músicas jamais tenham sido gravadas, pois elas foram, mas esta é a primeira vez que Springsteen e sua banda as interpretam e as inserem em um álbum de estúdio deles.

Aliás, vou usar o gancho para falar do segundo fator que destaca o álbum: ele foi gravado ao longo de apenas quatro dias no estúdio de Springsteen em seu rancho, com produção de Ron Aniello, responsável por seus dois álbuns anteriores, como se fosse um álbum ao vivo, mas sem ser ao vivo, se é que me entendem, dispensando regravações de voz e substituições sonoras típicas de álbuns de estúdio. Isso mostra o entrosamento impressionante entre os músicos e o nível técnico que eles alcançaram ao longo das décadas que leva à facilidade com que tudo aparentemente foi feito e, ainda por cima, com um resultado fora de série.

E talvez justamente por essas qualidades – o olhar para o passado remoto da banda com as canções “perdidas” e a gravação “ao vivo” em estúdio – Letter to You seja um retorno completo ao Bruce Springsteen de outrora, que muitos classificariam como raiz, ainda que ele nunca tenha sido verdadeiramente Nutella. Em termos de ritmo, sonoridade e voz, o álbum poderia muito bem ser inserido retroativamente na carreira setentista e/ou oitentista do artista. O que lhe retira essa possibilidade é a maturidade das letras e a visão lúcida sobre sua carreira, sua vida, seus fãs e tudo o que faz de Bruce Springsteen o que ele é, inclusive e talvez especialmente as perdas. E não, não é exatamente um álbum que carrega na nostalgia ou que dependa dela, mas sim que olha para o passado com orgulho e como ponte para continuar criando.

Essa maturidade que vem recheada de crescimento, perdas, desilusões e alegrias já fica marcada na canção de abertura, One Minute You’re Here, que, em sua enganosa simplicidade, estabelece o tom do álbum imediatamente, abrindo espaço para a música-título que reforça a natureza de lembrança e de uma espécie de transferência de percepção da vida embalada em um rock possante, mas nunca pesado e acima de tudo rítmico e fácil de acompanhar, mas não como um canção vazia daquelas feitas para grudar como chiclete. Burnin’ Train, então, vem para fechar essa conversa sobre o passado, com autoconsciência sobre a passagem de tempo e um pouco de conexão bíblica, sempre com a guitarra de Steven Van Zandt e a bateria de Max Weinberg marcando o ritmo acelerado, mas gostoso.

Janey Needs a Shooter, a quarta canção, é a primeira da trinca da velha guarda composta quando Springsteen ainda era um nome desconhecido. Destacando-se por sua duração de quase sete minutos e por ter realmente uma pegada de balada old school, mas que incrivelmente combina com a abordagem de “olhar para o passado” do álbum, e isso sem contar com um magnífico solo de Van Zandt ao final. Na verdade, falar dessa canção sem abordar as duas outras dos anos 70 – If I Was the Priest, a nona na ordem do álbum e Song for Orphans, a penúltima – seria um desserviço, pois elas formam um trio claramente identificável não só pela sua duração alongada em comparação com as demais, como também pela pegada de balada heroica, com tons religiosos e uma apreciação pelo Velho Oeste, algo que sempre marcou a discografia de Springsteen e que contrasta com a linha geral do restante das composições modernas, mais cínicas e, de certa forma, pessimistas.

Last Man Standing é, por diversos aspectos, o hino do álbum, a música que talvez seja toda sua razão de ser, com Springsteen falando dele mesmo em grande parte já idoso e erguendo-se com a força do rock como literalmente um dos últimos representantes de sua geração. The Power of Prayer, por seu turno, apesar do belo trabalho de Jake Clemons no saxofone, carrega demais no didatismo sobre ele próprio ou o que ele representa, retirando um pouco da força da canção. House of a Thousand Guitars, porém, apoia-se na característica voz rouca de Springsteen, com o lindo piano de Roy Bittan servindo de apoio único até que os demais instrumentos entram em cena, em uma balada simpática que mostra que, aos 70 anos, o cantor ainda facilmente segura quase sozinho uma faixa.

Letter to You não é e nem quer – ou precisa – ser inovador. Ao contrário, Springsteen e sua adorada banda entregam um álbum que usa o passado para mostrar que eles não estão parados lá. É o bem-vindo e sempre importante clichê dos altos e baixos da vida sendo materializados em 12 poderosas canções que resgatam o Springsteen de começo de carreira e evidenciam sua maturidade, autoconsciência e, sim, o quase intacto potencial de criar e encantar.

Aumenta!: Last Man Standing
Diminui!: Só aumenta!

Letter to You
Artista: Bruce Springsteen e E Street Band
País: EUA
Lançamento: 23 de outubro de 2020
Gravadora: Columbia Records
Estilo: Rock

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais