Com um texto dramático ainda muito relevante para debates sobre comportamento e relacionamentos humanos na contemporaneidade, Ligações Perigosas, dirigido por Stephen Frears, é uma tradução cinematográfica da peça Les Liaisons Dangereuses, de Christopher Hampton, que, por sua vez, é baseada no romance epistolar de Pierre Choderlos de Laclos. Lançado em 1988, o filme explora temas como sedução, manipulação e moralidade na aristocracia francesa do século XVIII. Ambientado na França de 1788, onde a Marquesa de Merteuil (Glenn Close) pede ajuda ao seu ex-amante, o Visconde de Valmont (John Malkovich) para realizar uma ação, no mínimo, sórdida: o objetivo da personagem é que Valmont ludibrie seu ex-marido, que planeja se casar com uma jovem virgem, antes do casamento. No entanto, o ousado personagem tem suas próprias ambições e decide conquistar uma jovem recatada (Michelle Pfeiffer), criando um complexo jogo de sedução numa trama repleta de reviravoltas.
A Marquesa, para garantir o sucesso do plano, exige que Valmont lhe forneça provas escritas de suas conquistas. Contudo, as intrigas e seduções rapidamente escalonam para consequências inesperadamente trágicas ao longo de seus 119 minutos, numa representação fascinante de uma sociedade francesa em transformação, refletindo os costumes e a moralidade de um período histórico marcado por profundas mudanças sociais. No enredo, as cartas desempenham um papel central na trama, funcionando como um meio de comunicação e manipulação. Elas simbolizam a intenção, a traição e a intimidade. Seu uso estratégico pelos personagens revela como a palavra escrita pode ser uma arma poderosa no jogo de sedução, afinal, a narrativa de Laclos, inspiradora para a peça de Hampton, tem uma composição epistolar. De maneira elegante, a direção de Frears, um ótimo condutor do elenco, ilustra como os personagens principais, a Marquesa de Merteuil e o Visconde de Valmont, se envolvem em um complexo jogo de manipulação e poder. Por meio de suas artimanhas, eles não apenas controlam os destinos de outras pessoas, mas também usam a sedução como uma arma para obter o que desejam, destacando o perigoso equilíbrio entre poder e vulnerabilidade nas relações humanas.
Um dos pontos mais interessantes de Ligações Perigosas, trabalhado numa perspectiva juvenil em Segundas Intenções, é a maneira como o enredo levanta questões sobre a moralidade no amor e nas relações. Por meio do jogo cruel de Valmont e Merteuil, a narrativa questiona se a busca por prazer e satisfação é justificável, mesmo à custa dos sentimentos e da integridade de outros. A falta de ética nos jogos de sedução crítica a superficialidade e o egoísmo da aristocracia, num flerte que não deixa de dialogar com o seu contexto de produção, os anos 1980, além de ter apelo reflexivo para a contemporaneidade, nos mostrando que quase nada mudou. Para tornar essa jornada esteticamente deslumbrante, em consonância com a ação e as ótimas linhas de diálogos do roteiro, o realizador contou com a direção de fotografia de Philippe Rousselot, assertiva em sua dinâmica de mostrar o esplendor do design de produção de Stuart Craig em eficientes enquadramentos abertos, com movimentação funcional para contar a história, também equilibrado ao trazer planos mais fechados para a representação dos personagens acossados em situações de pressão social e psicológica, enfatizadas pela condução musical de George Fenton, autor da textura percussiva marcante da trilha sonora de Ligações Perigosas.
A Marquesa de Merteuil, desempenhada pelo talento de Close, representa uma crítica ao patriarcado, revelando como mulheres da alta sociedade utilizam a astúcia e a manipulação como meio de sobrevivência em um mundo dominado por homens. Sua inteligência e habilidades estratégicas contrabalançam as limitações impostas pela sociedade a mulheres de sua classe. Por meio do texto dramático de Christopher Hampton, com seus diálogos afiados e cenas de interação social, a produção que toma como ponto de partida, uma peça teatral já conhecida por sua abordagem ácida dos relacionamentos humanos, expõe a hipocrisia da aristocracia, que se apresenta como moralista e respeitável, mas participa ativamente de jogos de sedução e traição. Essa dualidade revela a decadência moral da elite e sua superficialidade, numa história dominada por rituais de sedução muito inteligentes, afinal, as interações sociais no filme, especialmente as festas e bailes, são representações do ritual de sedução na sociedade aristocrática. Esses eventos revelam não apenas a dinâmica de poder entre os gêneros, mas também a forma como a aparência e o comportamento influenciam a percepção e a reputação de um indivíduo dentro da sociedade, algo que a versão seriada feita para o streaming, recentemente, não conseguiu assegurar enquanto proposta dramática, caindo nas soluções ficcionais fáceis.
Em linhas gerais, o filme mostra que as consequências das intrigas amorosas não afetam apenas aqueles diretamente envolvidos, mas também outras pessoas, como Cécile, a jovem vítima de manipulação. O impacto emocional e social da sedução é uma constante ao longo da narrativa, ressaltando o custo humano das relações baseadas em enganos. Valmont, um dos melhores personagens de uma história já preenchida por ótimas figuras ficcionais, é apresentado como um personagem complexo que, enquanto amante e manipulador, também se mostra capaz de sentimentos profundos. Essa dualidade gera um dilema moral: ele é um vilão ou uma vítima das circunstâncias em que vive? O filme provoca o espectador a refletir sobre o que delineia a verdadeira natureza de uma pessoa. Ademais, psicologicamente, percebemos que ao longo do filme, personagens que inicialmente parecem estar no controle enfrentam sua queda, pois o orgulho de Valmont e Merteuil é contestado. A tragédia que se manifesta no final serve como um aviso sobre os perigos da ambição desmedida e da desumanização nas relações pessoais. Uma épica narrativa dramática ainda muito atual, como já mencionado, história que nos mostra como a humanidade é complexa diante de suas interações sociais, principalmente quando dinâmicas de poder são estabelecidas na jogada. Um clássico de primeira linha, para ser visto, ou, no caso de quem já contemplou, ser revisitado vez ou outra.
Ligações Perigosas (Dangerous Liaisons) – EUA | 1988
Direção: Stephen Frears
Roteiro: Christopher Hamptom (baseado no romance homônimo de Pierre Choderlos de Laclos)
Elenco: Glenn Close, John Malkovich, Michelle Pfeiffer, Uma Thurman, Swoosie Kurtz, Keanu Reeves, François Lalande, Peter Capaldi
Duração: 119 min.