Nunca a leitura de “meras” 150 páginas me afetou tanto quanto minha experiência com Memórias do Subsolo, que Fiódor Dostoiévski publicou em revista própria dele e de seu irmão entre janeiro e abril de 1864 e que, ao longo das diversas edições que recebeu no Brasil, ganhou outros títulos como Notas do Subsolo, Diários do Subsolo, Cadernos do Subterrâneo e Notas do Subterrâneo. Sem sequer precisar mergulhar nas considerações filosóficas do personagem sem nome – normalmente conhecido como Homem do Subsolo – que nos fala em um monólogo em primeira pessoa sobre sua vida em dois momentos temporais bem diferentes, o que o autor russo faz é de uma agressividade ímpar, como se cada parágrafo representasse o narrador-protagonista violentamente pegando o leitor pela gola e berrando em sua cara, com direito a sentirmos seu hálito nojento e até mesmo sua saliva pegajosa, com direito até a alguns tapas vez ou outra. Foi não só a mais longa leitura curta que já tive, como a mais estafante e, talvez por isso, mesmo, uma daquelas obras que para sempre ficará marcada em minha mente.
Escrito durante a progressão veloz da tuberculose de sua primeira esposa, Maria Dmtriévna, que viria a falecer em março de 1864, Memórias do Subsolo é um discurso ideológico em forma de ficção em que Dostoiévski parece assumir o papel do protagonista, cultivando sua dor, sua angústia e, sobretudo, sua tentativa de compreender o mundo ao seu redor. Ele já era um autor de renome, exilado, preso, quase completamente sem dinheiro, e a novela bebe de todas essas características e outras, transformando o “subsolo” do título – que é também o título da primeira parte da novela, composta de 11 capítulos – não só em um lugar físico, em que o narrador parece viver em estado paupérrimo, como, também, em uma metáfora para sua condição comparativa com a sociedade e, mais ainda, uma configuração mental de seu sofrimento, já que ele se considera um homem mau, horrível, doente, incapaz de sair do labirinto autodestrutivo em que se encontra. Mas o Homem do Subsolo é inteligente e perfeitamente autoconsciente de quem ele é e o que ele faz, nessa primeira parte é explicar suas circunstâncias em uma narrativa de fluxo de consciência que respira forte e quente em uma estrutura de monólogos que antecipam perguntas e dúvidas do leitor, respondendo-as ou zombando delas em seguida, corrigindo-se, debatendo consigo mesmo e mantendo o mencionado tom agressivo até a completa exaustão dele e nossa.
Curiosamente, na segunda parte, ele retorna no tempo algo como 20 anos para contar aspectos de seu passado que informaram seu presente, notadamente a maneira como ele invade a comemoração de um desafeto, confrontando-o, ou como ele, depois de usufruir dos serviços da prostituta Liza e de levá-la a uma espécie de epifania, passa a destitui-la de toda e qualquer esperança de uma vida fora das paredes cada vez mais fechadas em que se encontra. O narrador é um homem profundamente machucado, depressivo, mas alerta de sua condição, totalmente incapaz de mudá-la, ao mesmo tempo em que seu discurso é anti-determinista, recusando-se a aceitar o conceito de que forças externas estabelecem aquilo que ele foi, é e será, o que expõe sua ambiguidade, sua qualidade tanto de vítima quanto de algoz. Afinal, se é sua escolha – e apenas sua escolha – poder dizer que 2+2 = 5, então é também sua escolha e apenas sua escolha ser quem ele é ao longo de todos os momentos de sua vida. Por essa razão é que a segunda parte da novela parece vir como uma forma de dar contexto ao homem agressivo que vemos na primeira, explicando que foram suas ações que o levaram ao ponto em que as “notas do subterrâneo” começam. Ao mesmo tempo, seu passado e seu presente se confundem e, ironicamente, revelam um homem que parece ser definido por forças externas, mesmo que berre aos quatro ventos que tudo é por sua escolha, por sua culpa.
Moralmente roto em suas próprias palavras, o narrador debate-se com sua condição, mas sem esboçar reação de mudança, ainda que – e isso é muito importante – ele definitivamente seja um revoltado, com o momento de seu passado com Liza sendo enquadrado como o ponto em que ele quase conseguiu sair de sua espiral autodestrutiva, elegendo, no entanto, permanecer nela. Doistoiévski, usando a voz de seu Homem do Subsolo, esbraveja a favor do pleno livre arbítrio, construindo um libelo que critica duramente as ideias de seu desafeto, o filósofo Nikolai Tchernichevski e seu O Que Fazer?, publicado no ano anterior e considerado como uma obra ainda mais relevante do que O Capital para a Revolução Russa, negando são só o determinismo como o conceito de utopia, considerada impossível por ele em razão justamente da natureza humana como ele a enxerga. Mas a ambiguidade do raciocínio é onipresente, por vezes até mesmo puxando o tapete da própria crítica tecida sobre o determinismo, já que é visível o quanto o narrador diz que escolheu seu caminho, mas, por vezes, o caminho é escolhido por ele, algo que permanece de maneira subjacente em sua própria personalidade irascível no passado e no presente.
O narrador-protagonista mostra saber o caminho para sair do subsolo físico, moral e ideológico e, por vezes, ele ensaia segui-lo, somente para recuar e voltar em decisões que parecem eivadas de teimosia, de uma recusa em dobrar-se a qualquer visão que destoe da sua própria, como uma espécie de profecia autorrealizável. E, de fato, se olharmos ao nosso redor e para dentro de nós mesmos, notaremos que, muitas vezes, queremos sair de onde estamos, queremos caminhar para fora, mas decidimos permanecer parados, uma decisão talvez apenas ilusoriamente tomada mesmo por nós e não pelas circunstâncias ao nosso redor, pelas paredes que vão se fechando e nos prendendo no subsolo de nossa mente revoltosa, mas ao mesmo tempo passiva. Aliás, o que Dostoiévski faz com suas 150 páginas que pesam mais do que o núcleo de uma estrela de nêutrons é erigir exatamente as paredes que nos prendem e que nos deixam presos mesmo quando a leitura acaba e tentamos respirar novamente. Memórias do Subsolo é uma agressão, mas uma agressão de que, mesmo sem saber, precisamos. E isso é ainda mais assustador.
Memórias do Subsolo (Записки изъ подполья – Rússia, 1864)
Autoria: Fiódor Dostoiévski
Editora original: Epoch
Data original de publicação: janeiro a abril de 1864
Editora no Brasil: Editora 34
Data de publicação no Brasil: janeiro de 2009
Tradução: Boris Schnaiderman
Páginas: 152
