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Crítica | Ninguém Sai Vivo Daqui (2023)

A história de um hospital contada de maneira rápida e equivocada.

por Arthur Barbosa
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“As personagens desta série são fictícias. Os fatos aconteceram realmente.”

Aviso Prévio 01, mostrado logo no início do filme.

Em 2021, a série Colônia – produzida pelo Canal Brasil – aprofundou a história de Elisa Casales de Albuquerque (Fernanda Marques), jovem que, aos 23 anos de idade, foi levada para o Hospital Colônia, em Barbacena, Minas Gerais (MG), por estar grávida de quatro meses. Essa ocorrência foi ocasionada em virtude de o pai dela, Júlio (Henrique Schafer), um homem extremamente conservador, não aceitar a situação: gravidez indesejada e filha fora de um casamento arranjado. Em virtude do sucesso dessa trama, em 2023, foi lançado o filme Ninguém Sai Vivo Daqui, o qual também narra a ida da moça para o horrendo local citado, mas, infelizmente, era melhor ele não ter sido produzido. Isso se justifica em função de os produtores terem cortado todas as cenas do seriado em uma espécie de “colcha de retalhos”, ou seja, houve a tentativa de remontar o enredo em inédito “quebra-cabeça”, porém as peças “não se encaixaram direito”. E olha que material-base não faltou, vejamos:

A partir da puração feita pela brilhante jornalista investigativa Daniela Arbex em Holocausto Brasileiro: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil, livro-reportagem lançado em 2013, o criador André Ristum pôde escrever a trama ficcional do Hospital Colônia de Barbacena, o qual funcionou entre os anos de 1903 e de 1980. Além disso, dois documentários também foram lançados para contar as atrocidades desumanas, pavorosas e perversas da unidade hospitalar, a saber: Em Nome da Razão – Um Filme sobre os Porões da Loucura, produzido pelo cineasta Helvécio Ratton, em 1979; e Holocausto Brasileiro, lançado em 2016, pela HBO. No entanto, o resultado ficou aquém do esperado, deixando, assim, uma sensação imensa de frustração, afinal de contas, em entrevistas prévias à época do lançamento, Ristum afirmou que teríamos cenas inéditas. Contudo, a nova perspectiva de Elisa em relação aos fatos apresentados não foi exibida, nem ao menos nas cenas pós-créditos, por exemplo.

Na unidade hospitalar, em 1971, Elisa sofre os mesmos abusos e as mesmas torturas, juntamente com seus amigos pacientes internados, todos vítimas de um sistema cruel e punitivo, realizado por médicos e por enfermeiros. No espaço, havia homossexuais, prostitutas, deficientes, alcóolatras, esquizofrênicos, pessoas em situação de rua (não existia esse termo na época, se eu não estiver enganado), isto é, todos aqueles rejeitados pela sociedade branca, tradicional e patriarcal brasileira. Todavia, para adaptar todos esses personagens em um filme de 86 minutos, a produção teve que enxugar tramas, como as três histórias dos amigos de Elisa, a saber: o jovem gay Gilberto (Arlindo Lopes), da prostituta Valeska (Andréia Horta) e da doce Dona Wanda (Rejane Faria). Em virtude disso, eles perderam destaque e as suas histórias paralelas foram drasticamente apagadas, deixando a narrativa de Ninguém Sai Vivo Daqui desinteressante, nada aprofundada e, de certa forma, confusa em comparação ao belíssimo seriado Colônia.

É evidente que o filme não é capaz de dar a dimensão do que realmente aconteceu em Barbacena, porque as amarrações no roteiro foram feitas de maneira extremamente acelerada e sem sentido. Como a série tem em torno de 200 minutos ao longo dos 10 episódios da primeira temporada, retirando uma cena aqui e outra ali, daria para eles fazerem um filme de 2h30 ou de 3h de maneira tranquila e eficiente, sem a necessidade de cortar tramas principais e paralelas importantes para o desenvolvimento dos personagens. Até mesmo a jornada de Elisa, a qual foi priorizada, não conseguiu o êxito de construir um arco dramático no qual o telespectador pudesse se afeiçoar e, assim, ter a empatia pelo sofrimento da protagonista. Ela foi da sanidade ao delírio em poucos acontecimentos: as justificativas não fizeram sentido! Se uma pessoa desavisada pegar o filme para assistir, sem ao menos ter visto o seriado anteriormente, com certeza, a sensação de não entendimento e de perplexidade vão estar presentes no final da exibição.

Outros filmes que também retratam a realidade de hospitais psiquiátricos conseguiram de maneira exitosa retratar a realidade da obra-base, como Um Estranho no Ninho (1975) e Bicho de Sete Cabeças (2001), ambos considerados pelos autores do Plano Crítico, como obras-primas em suas análises críticas, porém, de forma decepcionante, Ninguém Sai Vivo Daqui tenta fazer o mesmo sem ao menos conseguir encontrar um tom plausível. Em momentos-chave da narrativa, a força de Elisa e de outros personagens se perde, caracterizando cenas insossas do começo ao fim. É claro que há pontos positivos, como a atuação de Fernanda Marques na pele de Elisa e Augusto Madeira, em uma versão machista e extremamente violenta do enfermeiro/carcereiro Juraci. Ademais, mesmo que de maneira rápida, foram retratados os acontecimentos estarrecedores que ocorriam na unidade hospitalar, os quais, infelizmente, foram normalizados: as torturas física e psicológica, a ausência de comida e de bebida, os banhos de água fria com mangueira e, pior, as sessões de eletrochoque, com o objetivo de “curar” os intitulados “doentes mentais”.

Outra característica importante foi o fato de o filme ter sido totalmente gravado em preto e branco. E de forma a retratar com maestria, segundo o criador André Ristum – em entrevistas durante o lançamento de Colônia -, ele não conseguia enxergar outro formato de gravação dos episódios a não ser em preto e branco, porque “(…) a vida dessas pessoas não tinha nenhum brilho, nenhuma cor, nenhuma luz… Era, de fato, uma coisa monotemática (…), um ambiente mais soturno, desesperançoso. (…) Não consigo imaginar como seria contar ‘Colônia’ colorida. Não consigo enxergar isso. Pra mim, só tinha como ser mesmo em preto e branco, não tinha jeito (…)”, refletiu o roteirista. De fato, portanto, a ausência de cores foi algo espetacular, pois conseguiu nos conectar ainda mais à trama (da série, não do filme, diga-se de passagem), naquele universo de desesperança, sem vida, sem nada, isto é, demasiadamente triste.

No final, com a ajuda da enfermeira Laura (Naruna Costa), a jovem Elisa consegue finalmente sair do Hospital em uma eletrizante cena de fuga, com direito à nossa protagonista fingir estar morta em meio aos sacos de pano com corpos empilhados e ao extremo odor fétido. Nos minutos finais, então, somos surpreendidos, assim como os pais de Elisa, com o retorno da jovem, com ela apontando uma espingarda para eles e dizendo: “Oi, pai!”, fazendo-nos pensar em diversas teorias para uma continuação – que deverá estar presente na já  gravada segunda temporada da série-mãe, Colônia -, mas sem uma data de estreia. Será que finalmente Júlio perdoará a filha? Elisa conseguirá salvar os seus amigos do Hospital? E as denúncias às autoridades competentes serão feitas? Onde está Raimundo (Bukassa Kabengele), outro paciente que fugiu ao lado de Elisa? Por enquanto, ainda não temos respostas, todavia temos a certeza de que o seriado – embora tenha apresentado uma história extremamente triste e revoltante – conseguiu promover a reflexão para com os telespectadores, de modo que não tenhamos mais a intenção de repetir essa barbárie tão desastrosa enquanto seres humanos. Ninguém merece ser tratado pior do que lixo, e, justamente por isso, André Ristum e equipe conseguiram de forma brilhante nos emocionar com toda a trama de Elisa na série, e não no filme Ninguém Sai Vivo Daqui

Evidencia-se, portanto, que a verdadeira loucura está na maldade humana dos “normais”, e não naqueles que foram de forma errônea considerados “indesejáveis” – homossexuais, alcoólatras, grávidas fora do casamento, prostitutas, por exemplo – perante à sociedade. Apesar de ter ocorrido uma reforma psiquiátrica no Brasil, juntamente à Luta Antimanicomial, ainda como sociedade precisamos avançar muitos anos-luz à frente do combate às diversas formas de violência e de desumanidade. Para vocês terem uma ideia, de tão degradante e negativo que foi essa ocorrência, o município de Barbacena, em Minas Gerais (MG) – localidade onde se encontra o verdadeiro e já desativado Hospital Colônia – ficou conhecido como a “Cidade dos Loucos” pelo médico e escritor João Guimarães Rosa, no conto Sorôco, sua mãe, sua filha, de 1947, em virtude de ser um verdadeiro purgatório da vida real. Hoje, o endereço dá espaço ao Museu da Loucura, inaugurado em 1996, de forma a registrar essa memória genocida, em que os poucos sobreviventes recebem indenização do Estado, inclusive, conforme está escrito na obra-base. Dessa maneira, todo o material-base, assim como a série Colônia, incomoda e muito: não é um conteúdo fácil de ser consumido, afinal de contas, a série comprova que os verdadeiros “loucos” são os homens considerados “normais”. Eles são os verdadeiros monstros, que, por razões distorcidas e maldosas, praticaram uma violência exacerbada em cima de indivíduos vulneráveis e inocentes. É chocante: há 50 anos estávamos “fritando” pessoas em uma unidade hospitalar, sendo o procedimento considerado “exemplar”. É absurdo e imperdoável.

Percebe-se ainda que Ninguém Sai Vivo Daqui poderia ter continuado apenas como uma série, porque, embora seja um material super convidativo, o resultado final não é nada emocionante, e sim decepcionante. Além disso, a sucessão ininterrupta de calamidades se alia à dificuldade de resolver os conflitos ou aprofundar as psicologias de cada um dos personagens da história. O encontro do filho adulto Ricardo (Samuel de Assis) com sua mãe Wanda, a qual está presa há décadas no Colônia, ocorre com tamanha rapidez e facilidade que beira o humor involuntário. Outro ponto que me incomodou – e muito – foi a morte de alguns personagens importantes, e sua conversão em fantasmas caridosos (do tipo que observa os vivos com olhos doces e gentis, tal qual nos dramas espíritas), pois esse enredo de Waleska e de Gilberto se desenvolve com velocidade inverossímil. O que dizer da chegada abrupta do padre João (Nicola Siri)? Na série, isso tudo é muito melhor desenvolvido, sem sombra de dúvidas!

Dessa maneira, nota-se que há uma superficialidade imediata: o espectador – apesar da correria das cenas – sabe exatamente quem é do bem e quem é do mal, isto é, quem assiste, não é levado a refletir, a deduzir ou a questionar os comportamentos, já que toda a reflexão ficou na série Colônia. Você só terá mesmo o sentimento de ódio e de amor de forma profunda para com os personagens no outro material, e não neste esquecível longa feito às pressas. Somado a isso, o título não faz tanta referência à ficção, e sim aos telespectadores, porque ter saído vivo da sessão de cinema foi o maior feito que eu pude ter feito aqui, em Belo Horizonte, Minas Gerais (MG), no ano passado (peço perdão pelo trocadilho, risos). O filme, então, não apresentou nada inédito, tampouco aprofundou aquilo que acompanhamos ao longo dos 10 episódios de Colônia. Foi uma verdadeira frustração! Espero que isso seja corrigido na segunda temporada, a qual, apesar do desastroso filme, estou com uma expectativa positiva.

Ninguém Sai Vivo Daqui | Brasil, 2023
Diretores: André Ristum
Roteiristas: André Ristum, Daniela Arbex, Marco Dutra, Rita Glória Curvo
Elenco: Fernanda Marques, Augusto Madeira, Augusto Trainotti, Andréia Horta, Rejane Faria, Arlindo Lopes, Naruna Costa, Samuel de Assis, Henrique Schafer, Bukassa Kabengele, Aury Porto, Marco Bravo, Marcelo Laham, Márcio Américo, Paulo Américo, Vanderlei Bernardino, Maria do Carmo Soares, Lílian de Lima, Nicola Siri, Anna Kutner, Rafaela Mandelli, Teka Romualdo, Viviane Monteiro
Duração: 86 minutos

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