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Crítica | O Mercador de Veneza

por Sidnei Cassal
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Com certeza todo ocidental conhece Shakespeare, embora, hoje em dia, a maioria nunca tenha jamais lido alguma obra sua, conhecendo os enredos principalmente através de suas adaptações, a maioria pelo cinema.  Podemos medir a popularidade de suas obras a partir do número de adaptações que já tiveram. Romeu e Julieta é o campeão absoluto, é claro. Mas outras histórias criadas pelo bardo inglês fazem parte do imaginário coletivo, como Hamlet, Othelo e Macbeth, cujos elementos, histórias e até falas das personagens foram consagradas e difundidas ao longo do tempo. Mas o que dizer deste O Mercador de Veneza? O título é conhecido de muitos, mas poucos saberiam dizer em linhas gerais do que se trata. Esta falta de popularidade se confirma pelo número reduzido de adaptações para a tela, a maioria delas feitas diretamente para televisão. Orson Welles, notório entusiasta da obra shakespeariana, partiu para uma adaptação que nem sequer chegou a ser lançada comercialmente. Mas talvez o fato mais curioso ligado a esta peça é que sua primeira adaptação para as telas grandes, em 1914, marcou a primeira incursão de uma mulher na direção de um filme nos Estados Unidos.

Somente em 2004, o diretor inglês Michael Radford comandou uma produção que não fez feio ao adaptar a história do veneziano Antonio e seu credor, o judeu Shylock. Nesta versão, os papéis couberam, respectivamente, a Jeremy Irons e Al Pacino. Embora muitas pessoas não tenham o costume de prestar atenção aos créditos iniciais do filme, existe a informação de que se trata de uma co-produção entre a Inglaterra e Luxemburgo, esse último um verdadeiro outcast da produção cinematográfica mundial. O pequeno resumo que antecede o início do filme é bastante útil para nos situar no contexto histórico onde se situa a ação da história, com informações pertinentes e interessantes sobre a situação dos judeus em Veneza à época em que a peça foi escrita. Após, sem rodeios, presenciamos a cena em que Antonio humilha e despreza Shylock publicamente, sem imaginar que por forças das circunstâncias do destino se verá obrigado a procurá-lo com a intenção de lhe pedir um empréstimo em benefício de seu amigo e protegido, Bassânio. Shylock, que não esqueceu a recente atitude de Antonio, irá aproveitar a ocasião para vingar-se, propondo um bizarro contrato em que seu credor, caso não cumpra a obrigação contratada, deverá pagar com uma libra de sua própria carne. Por mais estapafúrdio que este contrato pareça, Shakespeare buscou nos hábitos de seus conterrâneos a origem do estranho pacto.

Uma das maiores virtudes desta adaptação reside no fato de ter sido filmada em locações autênticas em Veneza, cuja preservação do patrimônio histórico se presta bastante como cenário para filmes de época. Este elemento colabora bastante para afastar a impressão de simples teatro filmado que possuem muitas produções clássicas baseadas na obra de Shakespeare, principalmente as produzidas entre as décadas de 40 e 50. Mas, sem sombra de dúvidas, o maior trunfo desta versão reside na atuação impecável de Al Pacino no papel de Shylock. Embora o mercador do título da peça se refira a Antonio, mesmo no texto original é inegável que o agiota judeu é o personagem mais importante e célebre da peça. Hoje, a caracterização quase desumana de seu personagem é considerada por muitos como inaceitavelmente de cunho antissemita. No entanto, há quem defenda uma leitura mais favorável e oposta, que se justifica pelo famoso monólogo de Shylock, que se inicia com a célebre frase “Os judeus não tem olhos?…”, quando ele traz à tona o infame tratamento que recebiam à época, marginalizados e tratados como estrangeiros, sem ao menos terem o direito a possuir propriedades na cidade de Veneza.

Como costuma acontecer em grande parte das obras de Shakespeare, O Mercador de Veneza combina tragédia com toques de comédia e uma trama paralela à desavença entre Antonio e Shylock. Afinal, a dívida contraída por Antonio em benefício de Bassânio tem o objetivo de possibilitar a este concorrer como pretendente da bela Pórcia, que vive em Belmonte. O lado leve, descontraído da trama, fica por conta das personagens femininas, que irão colaborar com o desenlace final da trama.

O diretor Michael Radford, consagrado pelo sensível O Carteiro e o Poeta, e  a moderna e sombria adaptação de 1984, de George Orwell, não arrisca muito neste O Mercador de Veneza, deixando sobressair o texto e o jogo de cena dos atores. O resultado é um filme que, embora econômico na utilização dos recursos do cinema, é eficiente na direção dos atores e na fluidez da história.

O Mercador de Veneza (The Merchant of Venice, Inglaterra/Itália/Luxemburgo, 2004)
Direção: Michael Radford
Roteiro: Michael Radford
Elenco: Al Pacino, Jeremy Irons, Joseph Fiennes, Lynn Collins, Zuleikha Robinson, Kris Marshall, Charlie Cox, Heather Goldenhersh, Mackenzie Crook, John Sessions, Gregor Fisher
Duração: 138 minutos

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