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Crítica | O Oceano no Fim do Caminho, de Neil Gaiman

por Kevin Rick
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A realidade, ou melhor dizendo, a falta dela, pelos olhos de uma criança, é algo mágico, não? Acompanhando a história de um homem que retornou à sua cidade natal para um funeral, e então, após visitar uma fazenda vizinha que brincava quando criança, subitamente se lembra de eventos fantásticos da sua infância, O Oceano no Fim do Caminho, de Neil Gaiman, é um mergulho por todos os fragmentos de memória pueril que a idade adulta parece nublar e esconder por trás da maturidade e a racionalização.

Já nas primeiras páginas do livro, o autor estabelece sua narrativa de nostalgia melancólica da perspectiva do protagonista fazendo uma viagem temporal pelas ruas, casas e pessoas que conhecia, ou pelo menos sente que conhecia, sua dificuldade em juntar pedaços de lembranças e, especialmente, uma amálgama de aconchego e inquietação com seu passado. Com poucas páginas, Gaiman conquista a curiosidade com a fantasia, mas, principalmente, concebe seu tom de realismo mágico em torno da tristeza vaga que é crescer e perder a inocência infantil, aquele delicioso olhar exagerado para a simplicidade da rotina e, claro, como tudo soa fantástico e horripilante para quem está descobrindo, ou, melhor dizendo, criando, as incompreensibilidades do mundo.

À medida que conhecemos a história infantil do narrador sem nome – até um artifício de metalinguagem ao pensarmos no personagem como a personificação da infância e de nossa infância -, descobrimos o mundo de possibilidades e impossibilidades da imaginação de uma criança, como tudo soa gigantesco nos ambientes mais ordinários, desde uma pia amarela do tamanho certo, um pequeno lago que é na verdade um oceano ou uma fazenda vizinha chefiada por uma mulher que testemunhou o Big Bang, como também a maneira que a criatividade de uma criança cria monstros e pavores nos ambientes mais improváveis. Tudo é fantasiosamente grandioso, assombroso e belo pelas lentes da inocência infantil.

Pensando nesta construção de uma fábula nostálgica, Neil Gaiman dá uma aula de prosa em como atribuir sabor às palavras. Cada descrição de ambiente, situação ou emoção do protagonista é cuidadosamente feita para soar como uma memória longínqua, ora aconchegante, como na segurança de uma amizade verdadeira, um abraço maternal ou até mesmo a simplicidade de um café da manhã, ora apavorante, conforme víamos o mundo adulto de maneira dura e cínica – como de muitas formas ele realmente é -, e também no exagero fantasioso de uma porta fechada, uma babá malvada ou, como aqui, uma narrativa fantástica que vai da fantasia urbana até a criação do mundo, onde não sabemos se a história contada realmente aconteceu ou se é fruto de memórias fragmentadas.

Neil Gaiman assume este estilo de escrita meio onírica, no qual mergulhamos em uma distorção da realidade na visão de mundo exagerada naquele ponto da vida para o protagonista ou simplesmente estamos diante de uma fábula “real”. Mas, independente da “resposta”, o que verdadeiramente importa é o retrato da imaginação infantil. Ainda equilibrando mitologias nórdicas e gregas, discussões existenciais sobre o Universo com a família Hempstock, referências à livros dos Irmãos Grimm, Mary Poppins, e afins, Gaiman constrói em O Oceano do Fim do Caminho uma obra sobre a infância, mas direcionada ao leitor adulto. A despeito da deliciosa fábula, o ótimo tom nostálgico e as maravilhosas inserções de debates sobre a vida, o tempo e a memória, o que, acima de tudo, permanece durante a experiência desta leitura é a sublime visão de mundo pelos olhos inocentes e a mente inventiva de uma criança.

O Oceano no Fim do Caminho (The Ocean at the End of the Lane) — EUA, 2013
Autor: Neil Gaiman
Editora original: Editora William Morrow and Company
Edição lida para esta crítica: Intrínseca; 1ª edição | 2013
Tradução: Renata Pettengill
208 páginas

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