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Crítica | O Sobrevivente (2025)

O Big Brother do mal.

por Kevin Rick
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Edgar Wright parecia, à primeira vista, um nome perfeito para adaptar O Concorrente (The Running Man) de Stephen King. Seus filmes sempre equilibraram sátira, velocidade visual, consciência de gênero e um sarcasmo quase pop que dialoga naturalmente com narrativas sobre espetáculo e manipulação midiática. Além disso, o material vai além do visual, falando sobre o colapso moral de uma sociedade que transforma a miséria em entretenimento e o sofrimento humano em algoritmo. 

Ainda assim, embora o filme de 2025 seja disparado a adaptação mais fiel ao livro — muito mais próxima do que a trasheira musculosa de 1987 — Wright parece dividido entre duas vontades irreconciliáveis: fazer um thriller político brutal e fazer um produto estilizado de consumo fácil. Essa oscilação, que poderia resultar em tensão criativa, acaba gerando um filme funcional, energético, às vezes emocionante, mas também irregular, esticado e excessivamente conciliador com um material que, na minha visão, exigia mais aspereza e desalento.

O trunfo inicial do filme está no protagonista. Glen Powell entrega aqui sua melhor performance, escapando das caricaturas de galanteador para assumir a figura de um trabalhador anônimo corroído por desespero. Powell encarna Ben Richards com uma vulnerabilidade ranzinza, sem maneirismos heroicos, algo mais próximo do proletário esmagado pelo sistema que King imaginou, com um homem sem saída e cheio de raiva, empurrado para um jogo cujo único prêmio real é morrer depois de ter se tornado útil à máquina. Wright, porém, suaviza parte dessa dureza ao reconstruir Richards como uma espécie de líder revolucionário involuntário, um Che Guevara acidental moldado pelas câmeras.

O filme é mais interessante quando se concentra no “show”. Wright sempre filmou movimento como poucos diretores atuais, e aqui ele encontra no espetáculo televisivo um parque de diversões perverso para explorar: drones flutuam com elegância clínica, as transmissões falsas são montadas com a frieza de videoclipes corporativos, e o reality show ganha uma paleta cromática que mistura o neon publicitário com a sujeira das periferias decadentes. 

A estética da mentira, da pós-verdade, da narrativa plastificada enquanto corpo político, tudo isso emerge visualmente com força na fotografia da distopia. As aberturas de cada bloco televisivo, as manipulações grotescas das gravações do próprio Ben, os deepfakes toscamente agressivos mostram, também, que Wright acerta ao traduzir a distopia do livro para o imaginário digital do presente. A “economia do espetáculo” aparece não apenas como violência televisiva, mas como violência política e social transformada em conteúdo, digerível, compartilhável e, no fundo, lucrativa.

No entanto, mesmo com bons virtuosismos técnicos, penso que é a obra menos criativa de Wright em termos de set-pieces. Não vejo nem de longe a inventividade visual de Em Ritmo de Fuga (Baby Driver), por exemplo, tampouco a integração com música do mesmo (a trilha sonora aqui, inclusive, não passa muito do funcional). Em momentos esparsos de O Sobrevivente, a qualidade técnica do cineasta se sobressai do seu blockbuster padrão, mas é, sem dúvidas, uma produção aquém da energia cinética que vimos em outros trabalhos da sua carreira.

Ademais, se Wright compreende bem o sistema, o diretor/roteirista nem sempre desenvolve bem o lado temático. A narrativa do livro tem uma qualidade claustrofóbica, amarga e desoladora, uma descida progressiva à certeza de que não há escapatória possível. A adaptação de 2025 tenta equilibrar isso com momentos de humor nervoso, ironias à la Trilogia Cornetto e, sobretudo, com uma ambição sentimental que aproxima o filme mais de uma aventura distópica moderna do que de um mergulho desesperado na ruína moral dos Estados Unidos. 

Há algo de curioso na abordagem. Não sou contra a pegada mais satírica do texto, se aproveitando de alguns excessos e ironias, como a divertida piada recorrente de um reality show que emula As Kardashians (o próprio King flerta com isso). Mas o roteiro acaba por usar dessa vazão para construir um universo bastante unidimensional. As críticas da obra têm uma característica meio binária, além de bastante marretadas em suas mensagens expositivas ao público. Entendo, também, que se trata de uma obra mais pipoca, mas mesmo assim penso que falta sutileza e/ou densidade para que a obra soe menos superficial ou repetitiva em seus comentários redundantes. 

Os melhores momentos vêm da contradição ética do espetáculo, e Wright parece mais à vontade quando abraça essa ambiguidade. As cenas envolvendo Bradley Throckmorton (Daniel Ezra) e sua família têm a textura social que o filme às vezes tenta esconder: o cheiro de pobreza, o desespero de quem vive respirando ar tóxico, a amarga consciência de que o show não é o veneno, mas o sintoma. Infelizmente, é um bloco que acaba passando rápido, sendo substituído pelo estranhamente cômico arco de Elton Parrakis (Michael Cera), que realça certos problemas que tenho com a obra, seja no tom humorístico que nem sempre é acertado, seja nos excessos de Wright que incham a película.

Mesmo entre tropeços, a embalagem de entretenimento com certas reflexões para o público em geral dá o alicerce à um filme muito bom, talvez até ótimo com alguns ajustes. A produção é bem dirigida, bem atuada e tem um material original imaginativo o suficiente para chamar a nossa atenção. O que acontece e que acaba sendo o maior deslize da obra é o final Frankenstein, com direito a explicação expositiva, elipses, salto temporal e uma colagem de cenas que são estranhíssimas.

Não vou dar spoilers, mas parece uma decisão executiva para suavizar o desfecho original do livro, sem falar que é muito, mas muuuito mal gerida dentro da narrativa. É como se o clímax fosse substituído por um longo epílogo fragmentado. É um final ruim para uma obra muito boa e cheia de potencial, tornando-a ainda mais decepcionante dentro da filmografia de alguém do porte do Wright.

Ainda assim, O Sobrevivente de 2025 não é um fracasso. É um filme cheio de energia, com momentos audaciosos, belas cenas de ação e um elenco afinado (valendo destacar, além de Powell, o trabalho de Colman Domingo, Lee Pace e Josh Brolin como diferentes facetas de um governo autoritário e manipulativo). Fora que temos um entendimento visual muito claro dentro do que a trama está criticando e comentando. Infelizmente, falta um rigor dentro de uma obra inchada, falta densidade num texto tematicamente esquemático e certamente falta um desfecho melhor conduzido e diria até mais corajoso. Wright acerta muito, erra bastante, mas entrega um filme digno, ainda que menos contundente ou divertido do que poderia ser.

O Sobrevivente (The Running Man) — EUA, 2025
Direção: Edgar Wright
Roteiro: Michael Bacall, Edgar Wright (baseado no livro O Concorrente, de Stephen King, escrevendo como Richard Bachman)
Elenco: Glen Powell, William H. Macy, Lee Pace, Michael Cera, Emilia Jones, Daniel Ezra, Jayme Lawson, Sean Hayes, Colman Domingo, Josh Brolin
Duração: 133 min.

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