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Crítica | O Último Tango em Paris

por Marcelo Sobrinho
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A primeira e única confissão do diretor italiano Bernardo Bertolucci a respeito do não consentimento da atriz Maria Schneider na famigerada “cena da manteiga” só veio à tona em 2016, quando a atriz de O Último Tango em Paris já havia falecido. Schneider dissera publicamente por muitas vezes que se sentiu abusada por Bertolucci e por seu companheiro de cena Marlon Brando, já que não foi comunicada sobre tudo o que seria feito. O uso da manteiga como lubrificante na cena de sexo anal não estava previsto no roteiro e, confessa o italiano, foi uma ideia dos dois homens na manhã em que a cena seria filmada. A covardia indefensável dos dois veteranos do cinema contra uma atriz estreante e que tinha apenas 19 anos, ainda que Brando não tenha consumado o ato sexual propriamente dito, conseguiu ofuscar a qualidade de uma das maiores obras-primas do cinema italiano. A passagem do tempo tem feito muito mal ao filme de Bertolucci, que adquire cada vez mais a sinonímia de sua inescrupulosa cena. A ideia de Brando e Bertolucci naquela manhã tornou-se o estigma do filme. Um tiro no pé do diretor.

Entretanto, por pior que tenha sido a postura dos dois artistas e por mais difícil que seja examinar por baixo de uma marca tão ignominiosa, é preciso ter muita cautela ao falarmos de O Último Tango em Paris. O comportamento abusivo de Brando e Bertolucci não faz do filme um mero “lixo misógino vendido como obra-prima”, como afirmam alguns de seus detratores nada parcimoniosos. Hitchcock também cometeu abusos que podem ser facilmente categorizados como assédio moral e sexual contra a atriz Tippi Hedren nas filmagens de Os Pássaros. Tortura psicológica semelhante foi praticada pelo também ungido Stanley Kubrick contra Shelley Duvall durante a feitura de O Iluminado. Mas por que esses outros casos não recebem reprimenda semelhante por parte do público e da crítica quando tornados públicos? Suspeito que, para além do ato repudiante de Bertolucci e Brando, há algo em O Último Tango em Paris que fere também o que se entende por sexo politicamente correto. É preciso que se diferencie esses dois pontos da crítica feroz que se faz ao filme e que costumam estar injustamente misturados.

Esse segundo ponto que também muito incomoda os moralmente mais sensíveis é o trabalho maravilhoso que Bernardo Bertolucci realiza com a ideia do inconsciente como participante precípuo da sexualidade. Assistir ao seu famoso filme é adentrar em um poderoso sonho erótico, em que os jogos sexuais assumem gramática e códigos próprios, que não podem ser facilmente delimitados e compreendidos pela razão e pela consciência pura. A história de Jeanne (Maria Schneider), uma jovem de 19 anos que mantém relações sexuais com um homem bem mais velho – Paul (Marlon Brando) – em um velho apartamento parisiense, funciona como uma descida ao subsolo da sexualidade dos dois personagens. Ali não são necessárias maiores explicações. As narrativas pertencentes ao mundo externo se tornam inúteis e os nomes, objetos pretéritos onde nada precisa ser nomeado. O Último Tango em Paris é simplesmente sublime em trabalhar o sexo em sua dimensão de fantasia quando Paul pede a Jeanne que jamais contem suas histórias e seus nomes. Seus encontros são puro sexo. E isso já é muito.

Os protagonistas se conhecem quando estão em pontos opostos de suas existências. Jeanne está iniciando a vida e expressa sua vivacidade juvenil ao abrir todas as janelas do apartamento em busca de luz. Paul acaba de sair de um casamento que terminara de modo trágico. Derrotado, sua expressão de ruína se manifesta quando ele se esconde da luz em um canto escuro do quarto. A personagem de Schneider olha para fora em segundo plano, enquanto o personagem macambúzio de Brando baixa os olhos em primeiro plano, saindo das sombras. É possível condenar moralmente Bertolucci pela famosa “cena da mateiga”, mas é simplesmente desonesto não reconhecer a beleza e a inteligência de seus enquadramentos. Não só seus planos são primorosos. Quando a mobília do apartamento é trazida, Jeanne se desvia dos homens como que realizando passos improvisados de uma dança. A câmera avança e recua seguindo os passos da personagem, construindo o breve bailecito que embala a montagem do cenário que servirá ao sonho sexual de dois contrários. Contrários que se conectam sem que se saiba como.

O noivo de Jeanne, interpretado por Jean-Pierre Léaud, apenas encena o amor. Cineasta iniciante, ele filma um documentário sobre ela e a insere em sua mise-en-scène. Curiosamente, se é ele quem tenta esquadrinhar e registrar o relacionamento dos dois em uma obra de arte, caberá a Paul compreendê-la para além do jogo de cena. Os encontros dos amantes é destituído de qualquer embelezamento ou convencionalismo. Seus encontros apenas são, enquanto o noivado da jovem torna-se dependente da necessidade de ter que ser. O paroxismo dessa situação é visto em um pedido de casamento que ocorre frente às câmeras e com todos os maneirismos teatrais que tornam a cena particularmente perturbadora. Bernardo Bertolucci escolhe como noivo o célebre ator francês da Nouvelle Vague, que protagonizou tantos filmes de Truffaut e Godard, a começar pelo brilhante Os Incompreendidos. No fim das contas, a escolha de Léaud é também uma provocação do italiano aos cineastas do movimento francês. Mesmo como um rebento da “nova onda” francesa, Bertolucci criaria seu estilo próprio.

A dor de Paul após a morte trágica da esposa não se deve somente ao luto. Entendemos isso ao analisarmos a cena em que ele conhece o amante de sua esposa. Ambos vestem o mesmo roupão e o protagonista de O Último Tango em Paris nota-se completamente substituível e genérico. Replicável e irrelevante. Percebe-se que, em seu relacionamento convencional, marido e mulher pouco se conheceram realmente. O que punge a Paul não é o fato de terem se perdido na traição e na morte e sim a consciência de jamais terem se encontrado de fato. Paul e a ex-esposa e Jeanne e o noivo são como qualquer um dos casais que dançam tango nos minutos finais de projeção, com passos perfeitos, movimentos harmoniosos e a exatidão de um bailado que ignora o mistério e o indizível como o erótico em si. Mas Paul falha mais uma vez. Tenta reconstruir os laços com Jeanne violando suas próprias regras. Morre o amor e o sexo em sua dimensão de fantasia. Bertolucci, mais uma vez brilhante, desfere seu golpe final quando Jeanne atira em Paul ao mesmo tempo em que lhe diz, pela primeira vez, o seu nome.

O Último Tango em Paris apresenta o sexo como experimentação, com seus jogos íntimos tão arredios ao controle e ao patrulhamento externos. Essa linguagem tão própria de nossa sexualidade é examinada como nunca havia se feito na história do cinema. Os encontros entre Jeanne e Paul se opõem veementemente à tentativa atual de dizer o que é correto nas relações entre homem e mulher – uma normatização que teima em pregar um sexo programado e com medo de si mesmo. Um sexo quase contratual. Histérico porque, no fim das contas, só nega o gozo. No filme de Bertolucci, não há contratos. Ambos os amantes propõem e vivem seus jogos sem quaisquer rotas ou amarras. São esse desgoverno e essa ausência de medida que incomodam tanto os defensores do sexo politicamente correto nos dias atuais. Não é mesmo de se admirar que O Último Tango em Paris tenha se tornado ainda mais tabu em nosso tempo.

O Último Tango em Paris (Last Tango in Paris) – EUA, 1972
Direção: Bernardo Bertolucci
Roteiro: Bernardo Bertolucci, Franco Arcalli
Elenco: Marlon Brando, Maria Schneider, Jean-Pierre Léaud, Maria Michi, Massimo Girotti, Catherine Breillat, Giovanna Galletti, Catherine Allégret
Duração: 129 minutos

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