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Crítica | O Veículo Fantástico

por Leonardo Campos
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O documentário é um terreno promissor para a veiculação de projetos conscientizadores que geralmente não ganham a devida atenção nas pautas midiáticas do nosso jornalismo cotidiano. Idealizado por Nicole DiSante, diretora, roteirista e produtora do média-metragem em questão, O Veículo Fantástico é uma elucidativa realização sobre a presença do carro como símbolo de status em nossa sociedade, uma opção que caso fosse substituída ou equilibrada com o uso de bicicletas, tais como em nações mais desenvolvidas, garantia para os brasileiros um meio ambiente mais conservado, juntamente com o aumento da qualidade de vida de sua população.

Curitiba, cidade apontada como referência mundial no bojo das ciclovias e da gestão ecológica de seus meios é utilizada como ponto de análise para os temas abordados ao longo dos 34 minutos desta produção que nos traz algumas revelações nada animadoras sobre o que muitos depoimentos dizem ser pura publicidade. Assim, surge a questão: a capital do Paraná, de fato, é uma cidade ecológica, voltada ao uso da ciclovia como efetiva alternativa de transporte modal ou tudo não passa de uma farsa? Por meio dos diversos depoimentos de políticos, urbanistas, ciclistas e outros participantes do hall de entrevistas, a realizadora não conclui a sua resposta.

Ao fugir, de maneira certeira, da postura taxativa e totalitária, a direção de Nicole DiSante problematiza a totalidade do discurso reverenciado pelo mundo afora sobre a cidade, seus habitantes e a sua mobilidade urbana questionável. Dinâmico, o documentário se inicia com diversas bicicletas circundantes pelas ruas, imagens captadas pela fotografia de Guilherme Belglia. “Garça, magrela, camelo, cavalo seco”, etc. São várias as alcunhas para as bicicletas, meio de deslocamento tratado sem o mesmo zelo que os carros na dinâmica das políticas públicas brasileiras. Quem aponta a implicância é Fernando Rosembaun, participante do Coletivo Interlux, entrevistado que nos apresenta uma placa sendo pintada para comercialização num evento que pretende pagar as multas recebidas por três ciclistas do grupo.

Aplicadas durante uma manifestação em prol dos direitos dos ciclistas, questionadores da suposta mobilidade para a categoria na capital paranaense, as multas são apontadas como arbitrárias, base para fermentar o discurso politizado dos ativistas que aparecem para depor em prol da causa. Conectados pela boa edição de Giuliano Batista, os depoimentos seguintes concatenam as ideias da realizadora e fornecem bom ritmo ao documentário, bastante coeso e coerente em sua proposta crítica. Carlos Bellotto, integrante do Grupo Ciclovida, proclama a contradição das pessoas que reclamam das bicicletas por causa da falta de tempo para utilizar o meio, sendo que estas mesmas criaturas perdem as vezes duas horas num engarrafamento.

É a cultura do status automobilístico, da entrega ao sedentarismo, um problema que Eduardo Guimarães, Secretário das Relações Internacionais, aponta ser do “próprio brasileiro”. Ao narrar o caso de um dos funcionários que tem um filho de 16 anos já habilitado, mas a aguardar completar 18 para usar o carro que já lhe foi comprado, a sua fala denuncia a busca por aparências de um povo que não reflete o meio ambiente, uma nação despreparada para dialogar sobre tópicos de educação ambiental na prática, fora dos documentos e da teoria. Olga Prestes, Arquiteta e Urbanista da URBS, parte integrante da Prefeitura de Curitiba, reforça que a mobilidade urbana é o equilíbrio de todos os movimentos da cidade.

Ela não nega a importância dos automóveis, por exemplo, mas traz políticas restritivas, como a diminuição das vagas de estacionamento, recursos que beira ao “castigo” e não resolvem o problema de maneira efetiva. O depoimento da urbanista flerta com a fala de Jamie Lerner, arquiteto que já foi prefeito da cidade no passado. Ele aponta que não cabe aos gestores resolver os problemas apontando o que é melhor ou pior, mas gerenciando os dois lados. É um ponto de vista inteligente e que poucas vezes nos atentamos, pois na atual conjuntura de apoio governamental ao desenvolvimento da indústria, a produção de automóveis não diminuirá.

É ilusório pensar desta maneira. Seria o ideal, mas o que é ideal, sabemos, bem sempre funciona em quesitos práticos. As forças políticas tensionadas de todos os lados muitas vezes precisam atender aos interesses de empreendedores e as bases da luta pelo não sucateamento das ciclovias acaba por perder a batalha. Ademais, os participantes questionam os motivos que levam os curitibanos a não fazer o devido uso de seu transporte público. Por que não utilizar, já que é uma referencia mundial? Há algo de muito errado neste processo e outro depoente alega que a tal biocidade vendida na mídia não passa de publicidade, haja vista o alto investimento do município em sua imagem imaculada de centro urbano ecológico.

O legado atual está no desdobramento de políticas públicas que foram estabelecidas há mais de três décadas, era já modificada na dinâmica social. A população aumentou, mas as vias não acompanharam a sua evolução. Uma das ciclistas entrevistadas aponta que as vias para bikes formam um circulo que se fecham em si mesmas. Você não vai, por exemplo, de um ponto a outro da cidade para trabalhar, estudar ou cumprir alguma outra missão. O que há disponível é a circularidade como parte do lazer e das atividades físicas. Outra coisa é a presença de ciclovias em áreas deslocadas do centro, o que impede a presença das bicicletas como meio de transporte modal para a resolução de questões básicas do cotidiano.

Outro problema é a calçada. Não é para ciclistas, mas para pedestres, não é mesmo? Mas em muitos casos, é a única opção em trechos que a pessoa precisa estar para evitar ser atropelada ou sofrer algum outro acidente fatal. Outro ponto interessante em O Veículo Fantástico é a opressão que pessoas trabalhadoras sofrem ao utilizar as suas bicicletas, pois conforme um dos entrevistados, alguns donos de empresa não pagam o transporte para quem se desloca por meio desta alternativa. Um absurdo, não é mesmo? O problema, enraizado, passa pela população despreparada, pelas posturas escusas de empresários e pelo descaso governamental de uma questão que envolve saúde, economia, política, e outros setores basilares de nossa sociedade.

Andar de bike, como reforça um depoimento, é resistência. E esse é o trabalho de ativista que geriu este documentário fluido, interessante e bastante elucidativo, uma excelente estratégia de divulgação para a causa que não é apenas dela, mas algo de ordem coletiva.

O Veículo Fantástico — (Brasil, 2011)
Direção: Nicole DiSante
Roteiro: Nicole DiSante
Elenco: Fernando Rosembaun, Olga Prestes, Jamie Lerner, Eduardo Guimarães, Carlos Bellotto
Duração: 34 min

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