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Crítica | Obcecado por Um Corpo Que Cai: Nova Vida Para a Obra-Prima de Hitchcock

Os bastidores da restauração de um dos mais importantes filmes da cinematografia de Hitchcock.

por Leonardo Campos
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O documentário Obcecado por Um Corpo Que Cai: Novo Olhar Para a Obra-Prima de Hitchcock, lançado em 1996 e dirigido por Harrison Engle, apresenta uma profunda e meticulosa exploração da restauração do clássico Um Corpo que Cai, de 1958, considerado um dos principais filmes do mestre do suspense. Com um investimento significativo de aproximadamente U$1 milhão por parte do conglomerado Universal, a produção não se limita apenas a relatar o processo de restauração dos negativos desbotados que repousavam nos arquivos do estúdio, mas também oferece uma análise enriquecedora sobre as complexas camadas de significado do filme. Com um tempo de duração de 28 minutos, os realizadores destacam não só o valor histórico e cultural de uma obra-prima do mestre Alfred Hitchcock, mas também a importância da preservação de clássicos cinematográficos que, devido ao desgaste do tempo, correm o risco de ser perdidos para futuras gerações.

A narrativa do documentário inicia-se de forma cativante com os realizadores na icônica ponte Golden Gate, em São Francisco, uma localização que não apenas serve como um pano de fundo visual impressionante, mas também como um elemento simbólico que conecta o filme Um Corpo Que Cai a outras produções cinematográficas, como Instinto Selvagem. A ponte, em seu esplendor arquitetônico, representa a culminação da tensão e do suspense presentes nas obras de Hitchcock, e sua presença no documentário nos conecta de forma intertextual a clássicos modernos que se inspiraram em sua narrativa ousada e subversiva. O uso de gráficos visuais no documentário, repletos de referências estilísticas, como espirais que remetem a elementos do filme original, cria uma experiência que se destina não apenas aos aficionados por Hitchcock, mas também a um público mais amplo, que pode apreciar os diferentes níveis de interpretação e a linguagem cinematográfica que permeia a obra.

Os depoimentos presentes no documentário são outro destaque, trazendo à tona reflexões de figuras significativas do cinema. A filha de Hitchcock, entrevistada, expressa uma percepção intrigante ao afirmar que assistiu ao filme várias vezes sem, no entanto, entender totalmente sua complexidade. Essa revelação não apenas enfatiza a profundidade do filme, mas também provoca uma reflexão sobre a natureza da arte e como suas interpretações podem variar significativamente entre diferentes espectadores. Da mesma forma, o renomado cineasta Martin Scorsese traz sua própria admiração pelo trabalho de Hitchcock, comentando sobre a meticulosidade do diretor na escolha das cores e como isso se relaciona com suas obsessões pessoais. Scorsese sugere que o roteiro de Hitchcock, tradução do livro homônimo, pode ser lido como um reflexo de suas próprias inquietações, um fator que acrescenta uma camada adicional de complexidade à análise do papel do filme em seu contexto histórico e na evolução do cinema.

Além das discussões sobre a estética cinematográfica, o documentário relata a sua missão fundamental de restaurar e preservar os negativos deteriorados que quase se perderam após a última exibição do filme em 1984, quando a cópia estava em estado lastimável e a qualidade comprometida. A equipe de restauração, comprometida com a preservação do legado de Hitchcock, teve a tarefa extraordinária de revitalizar uma obra que já havia impactado o mundo cinematográfico. Os restauradores afirmam que, com o trabalho realizado, Um Corpo Que Cai não apenas será mantido na memória coletiva por mais 200 anos, mas também será uma referência fundamental para as futuras gerações que buscam entender a complexidade das narrativas do cinema. O depoimento humorístico de Hitchcock ao visitar a ponte Golden Gate – “esse lugar seria ideal para uma morte incrivelmente cinematográfica” – encapsula a essência do seu trabalho e a forma como ele via o mundo ao seu redor, sempre em busca de criar momentos de tensão e suspense que ressoariam profundamente na psique dos espectadores.

Diante do exposto, o documentário Obcecado por Um Corpo Que Cai: Novo Olhar Para a Obra-Prima de Hitchcock é uma rica exploração dos elementos que formam a composição do icônico filme de Alfred Hitchcock. Desde os storyboards até as escolhas de cor e a dinâmica visual, o documentário revela os meandros da criação cinematográfica. Hitchcock é amplamente reconhecido como um mestre em manipulação visual e psicológica, e suas colaborações com a figurinista Edith Head e o designer gráfico Saul Bass são fundamentais para entender a importância das cores e dos gráficos na narrativa de Um Corpo Que Cai. As decisões estéticas tomadas por Hitchcock vão além da superfície: elas comunicam as dimensões psicológicas dos personagens, ligando elementos visuais profundos à trama intimista e complexa. A utilização predominante de verde e vermelho, a neblina que permeia as cenas e a estilização dos trajes são expressões de um cuidadoso planejamento, onde nada é deixado ao acaso. Ao apresentar esses detalhes, o documentário não apenas ilumina a obra, mas também oferece uma nova forma de apreciação da cinematografia hitchcockiana.

O desenvolvimento do personagem de James Stewart, que sofre de acrofobia, é amplificado pela escolha do diretor de fotografia, que implementou uma técnica inovadora de zoom frontal com recuo simultâneo. Essa estratégia visual foi essencial para transmitir a sensação de tontura e desorientação que o protagonista enfrenta ao longo do filme. Assim, a câmera não apenas capta imagens, mas se torna um instrumento de imersão na psique do personagem. A identificação do espectador com os traumas e inseguranças do protagonista é intensificada através dessa técnica, permitindo uma interação visceral com a narrativa. Hitchcock elabora um espaço onde a estética se entrelaça com a neurose, tornando-se um reflexo da condição humana diante do amor, do medo e da incapacidade de controle. A transição de uma figura masculina firme para um homem desequilibrado ressoa com a ideia de que a vulnerabilidade pode ser tanto um tema quanto uma experiência visceral, criando uma atmosfera de tensão emocional palpável.

A mudança de Vera Miles para Kim Novak também é uma parte significativa da análise contextualizada no documentário. A beleza de Novak e sua caracterização como a enigmática femme fatale moldaram a imagem de uma nova geração de mulheres no cinema. A combinação do visual deslumbrante, a escolha de trajes e a maquiagem, todos guiados pelas orientações de Edith Head, cimentaram a presença de Novak na mente dos espectadores. Além disso, sua representação em Um Corpo Que Cai estabeleceu um paralelo para o que foi visto em Instinto Selvagem na década de 1990, onde Sharon Stone canaliza um espírito semelhante. Essa relação intertextual não apenas indica a influência duradoura de Hitchcock, mas também ressalta aspectos culturais e sociais do papel da mulher no cinema ao longo das décadas. O impacto de sua personagem vai além da narrativa, apresentando um ideal estético que continua a ser uma referência nos filmes contemporâneos.

Por fim, o documentário não se limita apenas a contemplar a estética visual, mas também aborda os contextos sociais e morais que impactaram a produção de Um Corpo Que Cai. Os códigos morais da época de Hitchcock restringiram alguns dos elementos que o cineasta gostaria de explorar mais explicitamente. Embora o filme tenha sido inovador, muitas das suas passagens mais provocativas foram sutilmente abordadas, criando um espaço de tensão entre o que é sugerido e o que é mostrado. Essa ambivalência é parte do que torna a obra-prima tão intrigante até hoje. A colaboração com Saul Bass na criação de créditos iniciais que simbolizam redemoinhos leva a uma meta-narrativa que, por si só, provoca uma reflexão sobre a estrutura e a atmosfera do filme. Cada elemento visual é mais do que uma escolha estética, isto é, é um comentário sobre a confusão emocional e a intriga psicológica que permeiam a obra.

Um documentário breve, mas rico como uma boa aula de linguagem cinematográfica.

Obcecado por Um Corpo Que Cai: Nova Vida Para a Obra-Prima de Hitchcock (Obssessed with Vertigo/EUA, 1996)
Direção: Harrison Engle
Roteiro: Harrison Engle
Elenco: Roddy McDowall, Harrison Engle, Martin Scorsese, Robert A. Harris, Samuel Taylor, Pat Hitchcock, Kim Novak
Duração: 28 min.

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