Raoul Peck retorna a seu estilo de documentário que usa as palavras do sujeito de sua análise para contar uma história bem mais ampla, como ele fez em Eu Não Sou Seu Negro, para falar do romancista britânico Eric Arthur Blair, mais conhecido como George Orwell. Ele parte quase exclusivamente das próprias palavras do autor em seus últimos anos de vida, já doente, com Damian Lewis fazendo um excelente trabalho de narração, para levar o espectador a uma visão geopolítica mundial que mostra, sem deixar muito espaço para dúvida, que basicamente já vivemos na distopia orwelliana materializada em 1984, sua obra mais conhecia ao lado de A Revolução dos Bichos. E, para fins de equilíbrio de expectativas, diferente de Os Diários de Yasujiro Ozu, em que Daniel Raim parte do mesmo tipo de fonte para contar a história de vida do grande cineasta japonês, o filme sob análise é menos sobre a vida do autor britânico do que sobre a segunda parte do título, que simboliza, para todos os efeitos, o totalitarismo, o verdadeiro alvo dos comentários de Peck pelas palavras de Orwell e voz de Lewis.
Começando do momento em que Orwell se muda para a Ilha de Jura, na Escócia, para fugir da intensidade da cidade grande, as palavras do romancista vão sendo justapostas tanto a tomadas áreas atuais da ilha quanto a fotografias dele, além de trechos das mais diversas adaptações audiovisuais de 1984, o romance que ele estava começando a escrever nessa época e que seria o seu último. Peck ensaia uma abordagem somente biográfica, mas não demora a abrir os horizontes e a jogar um grande “puçá narrativo” para congregar todos os horrores do século XX e dos primeiros 25 anos do século atual sob a visão presciente, pessimista e muito clara de Orwell. Usando imagens de arquivo que abordam décadas e décadas de morte e destruição causadas pelo imperialismo e pelo totalitarismo, o longa navega por essas águas turbulentas reunindo de Hitler e Stalin a Khmer Vermelho e ditadura chilena, chegando a Donald Trump e seus amigos Vladimir Putin e Benjamin Netanyahu, sem esquecer da concentração desproporcional de renda na mão de meia dúzia de bilionários e o controle da circulação de informações e da inteligência artificial que impede a detecção do que é real e do que é falso, Raoul Peck funde todos os males modernos em um conjunto único, o que é obviamente uma maneira de simplificar a abordagem, mas que faz perfeito sentido.
E sim, ao trazer Trump para o “mesmo saco” de todos os demais, Peck assume uma posição política forte que será vista por muitos como injusta e polêmica, mas que está muito claramente dentro da visão orwelliana do que era então futuro e que só poderá mesmo ser negada por aqueles que também se encaixam na mesma visão, o que forma a tempestade perfeita de pura ironia histórica. O documentarista, porém, acertadamente se esquiva de explicar o que mostra para além de brevíssimas legendas, exigindo que o espectador tenha conhecimento histórico suficiente para identificar pelo menos por alto o que está sendo mostrado e fazer as conexões, algo que, no mundo atual, infelizmente pode ser pedir demais para muita gente. Mesmo assim, Orwell: 2+2=5 seria um filme que o próprio George Orwell provavelmente taxaria de didático, já que o conjunto narrativo criado por Peck estabelece um quadro bastante óbvio, mesmo que, pessoalmente, eu ache que a distopia de Aldous Huxley em que o excesso de informações destrói a importância dessas mesmas informações seja mais exata – ou pelo menos complementar – para o mundo em que vivemos.
Não é um didatismo que atrapalha o filme, mas ele torna alguns pontos das críticas de Peck repetitivos e portanto, talvez, pudessem ter sido evitados. Por outro lado, por vezes deixar a mensagem clara, sem sombras de dúvida, tem seu valor e, como o encaixe das palavras de Orwell se dá de maneira fluida mesmo nesses momentos de reiteração, pode-se dizer que o documentarista reúne o útil ao agradável, ainda que, logicamente, não haja absolutamente nada de agradável no que vemos passar diante de nossos olhos. Orwell: 2+2=5 é, portanto, um filme para quem quer um panorama geral do totalitarismo no mundo moderno, algo muito mais presente e mais constante do que se imagina, com um “profeta” do passado tendo suas palavras transformadas em nossa triste realidade.
Orwell: 2+2=5 (Idem – França/EUA, 2025)
Direção: Raoul Peck
Roteiro: Raoul Peck
Com: Damian Lewis (narração)
Duração: 119 min.