Home FilmesCríticasCatálogosCrítica | Os Dez Mandamentos (1923)

Crítica | Os Dez Mandamentos (1923)

Épico bíblico de respeito.

por Luiz Santiago
310 views

DeMille filmou, em 1923, um dos mais fantásticos épicos do cinema com Os Dez Mandamentos, obra que transformou as possibilidades dramático-narrativas do filme silencioso americano e reforçou as convenções do épico moderno numa corajosa combinação entre inovação técnica e grandiosidade visual — receita que influenciaria gerações posteriores de profissionais do cinema e estabeleceria novos padrões para a produção de grande escala, um legado herdado de fitas fundamentais como Cabíria (1914) e O Nascimento de uma Nação (1915). O enredo, aqui, é dividido em dois grandes blocos: um prólogo bíblico, ambientado no antigo Egito, e uma história contemporânea, na São Francisco dos anos 1920, onde o diretor explora a permanência da ética dos mandamentos divinos através de uma proposta geral — plástica e temática — que conecta passado e presente. 

Na primeira parte, Theodore Roberts, o maior destaque do elenco, interpreta Moisés como uma figura inspirada no painel Frieze of Prophets, de John Singer Sargent, sempre muito intenso e concentrado, transmitindo o peso de sua missão. Charles de Rochefort dá vida ao Faraó Ramsés com presença majestosa e autoritária e Estelle Taylor faz uma Miriam que mescla sensualidade e devoção religiosa. Junto a um vasto elenco de coadjuvantes e figurantes, eles recriam a história do Êxodo de maneira dramaturgicamente impactante, numa produção que inventa, modifica ou extrapola as fontes reais, mas ainda mantém boas referências históricas, dando a identidade visual reconhecível da película. E só para deixar claro: sim, existe um número grande de inconsistências históricas aqui — talvez a mais apontada seja o fato de que as pirâmides não foram construídas por escravos — mas é sempre bom repetir: ficções não têm obrigação com exatidão histórica

O diretor utilizou duas técnicas pioneiras de colorização no projeto. O processo Handschiegl, que aplicava corantes manualmente a áreas específicas dos fotogramas — técnica artesanal que realçava elementos dramáticos como o azul do Mar Vermelho ou o brilho das chamas, sem colorir o quadro inteiro; e o Technicolor Processo 2 (two-strip), captando imagens em uma câmera especial que dividia a luz em dois negativos (vermelho e verde), combinados por impressão de imbibição, criando um efeito impactante em sequências como a travessia do Mar Vermelho ou a adoração do bezerro de ouro. Embora várias fontes confirmem o uso desses dois processos, debate-se a extensão do Technicolor Processo 2 nas cópias exibidas. Praticamente todas as versões preservadas têm apenas o Handschiegl. E o fato de a maioria das versões, hoje, serem totalmente em preto e branco, se deve à deterioração das películas de nitrato, à conversão para formatos monocromáticos e aos altos custos de preservação das versões coloridas.

Outra coisa que chama muito a atenção são os impressionantes efeitos visuais desenvolvidos por Roy Pomeroy, que criou a famosa sequência da abertura do Mar Vermelho filmando gelatina moldada sobre mesa metálica, derretida por jatos de gás e capturada em movimento reverso para combinação posterior com tomadas dos hebreus caminhando em direção à terra prometida. Já o pilar de fogo foi feito com a superposição de chamas reais (dupla exposição); enquanto nas pragas do Egito foram feitas escolhas práticas, como mangueiras de jardim com água tingida simulando sangue, e pipoca substituindo granizo, por sua maior resistência e por ser segura para os atores e animais envolvidos.

No segundo bloco da saga, o roteiro faz uma guinada na abordagem e explora a aplicação moral da parte bíblica através da história dos irmãos McTavish: John (Richard Dix), carpinteiro humilde e devoto, e Dan (Rod LaRocque), que ascende socialmente violando todos os mandamentos. E ambos disputam o amor de Mary Leigh (Leatrice Joy), para variar. O comportamento desregrado de Dan acaba trazendo para sua vida uma série de tragédias, entendidas como o resultado de seus pecados. É claro que esta é uma posição moralista e condenatória do roteiro, mas ela faz sentido para aquilo que vem sendo construído desde a primeira parte; não é como se estivéssemos numa narrativa de salvação e nos deparássemos praticamente com uma ameaça de morte e mais uma dezenas de imposições aleatórias, como acontece nos famosos filmes cristãos contemporâneos.

A direção de arte de Paul Iribe e Francis McComas conecta as duas épocas do longa através das tábuas dos mandamentos (motivo condutor visual), que aparecem nos cenários sempre que uma lei se torna importante para a história. Essa solução simples liga a tese bíblica ao que está acontecendo na tela, sem parecer forçado, principalmente quando consideramos as diferentes temporalidades. DeMille filmou as cenas da catedral com uma técnica aplaudível. Na sequência em que Mary sobe de elevador para encontrar John no telhado, a câmera mostra os dois pontos de vista e inclui a cidade ao redor, criando imagens que são inacreditáveis para 1923. Anne Bauchens, que depois se tornaria a primeira mulher a ganhar o Oscar de Montagem, editou o filme ligando suas duas fases como uma teia imagética coesa e instigante. Sua longa parceria com DeMille começou aqui, e foram 38 anos trabalhando juntos. Mesmo com uma produção tão grande e complicada, ela conseguiu manter o filme claro e no ritmo certo.

Os Dez Mandamentos (título que DeMille refilmaria, em 1956) é uma produção ambiciosa que marcou época e influenciou gerações de cineastas. DeMille transformou a conhecida história bíblica num espetáculo cinematográfico que funciona em várias camadas: como entretenimento popular, experiência espiritual e demonstração do potencial artístico do cinema ainda em suas primeiras décadas. Empregando todos os recursos técnicos disponíveis na época, o diretor criou uma obra de grandiosidade visual e sofisticação narrativa que se tornou marco do cinema em seu país. Esta versão silenciosa nos fascina até hoje porque envelheceu melhor que muitos de seus sucessores. Enquanto outros épicos soam datados (no conteúdo, na proposta e na forma), este mantém uma constituição geral que é atemporal e que poucos filmes conseguem sustentar, mesmo depois de um século de vida.

Os Dez Mandamentos (The Ten Commandments) — EUA, 1923
Direção: Cecil B. DeMille
Roteiro: Jeanie Macpherson
Elenco: Theodore Roberts, Charles de Rochefort, Estelle Taylor, Julia Faye, Pat Moore, James Neill, Lawson Butt, Clarence Burton, Noble Johnson, Edythe Chapman, Richard Dix, Rod La Rocque, Leatrice Joy, Nita Naldi, Robert Edeson
Duração: 136 min

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais