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Crítica | Peppermint Frappé

por Luiz Santiago
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A melhor das duas homenagens que Carlos Saura fez a Luis Buñuel, Peppermint Frappé (1967) é uma obra-prima do cinema espanhol, e foi o pontapé inicial para o reconhecimento do cineasta fora de seu país. O filme ainda encerra o polêmico episódio ocorrido em maio de 1968 no Festival de Cannes, quando Truffaut, Godard, Berri, Lelouch e outros cineastas invadiram o salão onde era exibido Peppermint Frappé, penduraram-se no lustre e impediram a projeção da obra. Os diretores apoiavam o cancelamento imediato do Festival como gesto de solidariedade à causa dos estudantes e operários que protagonizavam manifestações históricas naquele momento e que entrariam para a história como símbolo do espirito sessentista.

A despeito do impasse de sua estreia em Cannes, Peppermint Frappé sobreviveu ao tempo e se inscreveu como marco definitivo no início da carreira de Saura. Além da homenagem feita a Buñuel, com a citação dos tambores de Calanda e trazendo toda a dinâmica do fetiche sexual e sua repressão, observadas em filmes como Viridiana, Diário de Uma Camareira e A Bela da Tarde, essa obra guarda muito do enredo contido em Um Corpo Que Cai (1958), de Hitchcock, especialmente na tentativa do personagem masculino (aqui, interpretado maravilhosamente por José Luis López Vázquez) de transformar uma mulher em outra, baseando-se em semelhanças físicas e símbolos, sempre ligados ao fetiche sexual.

Mas além do teor erótico, nos deparamos também com um toque político no que se refere às duas personagens femininas, magistralmente interpretadas por Geraldine Chaplin. Um delas representa o caráter passivo feminino, subserviente, contido, um reflexo da personalidade cristã somada à personalidade do cidadão alienado que vive para obedecer ordens e dizer “sim” a tudo. A outra representa a mulher moderna, ativa, controladora das ações do marido, e que não tem pudor em ser beijada por outro homem, experimentar coisas novas, provocar e humilhar os outros. A Espanha franquista vê-se diante de uma novo modo de agir e viver, segundo a imagem dessas duas mulheres.

Em Simão do Deserto, Buñuel conta a história de um pregador milagreiro que após forte resistência às tentações do diabo, cede, e vai para os Estados Unidos, onde aparece fumando e bebendo em um bar, na cena final, onde jovens dançam um rock alucinadamente. A mesma transformação radical ocorrida no filme de Buñuel vê-se em Peppermint Frappé. Tanto na personagem principal, Julián, quanto em sua enfermeira Ana, presenciamos uma intensa mudança de comportamento, que serve até para a construção do suspense. Embora ambos conservem ao final do drama, muito de sua personalidade comedida, a cumplicidade assassina, a realização da fantasia com outrem e o clímax sexual nos indicam que não são mais as mesmas personagens a que fomos apresentados no início. Essa mudança, no entanto, está presa em corpos que disfarçam muito bem seu verdadeiro interior.

É difícil acreditar que Peppermint Frappé é o quarto filme dirigido por Saura. A segurança na direção e o excelente resultado final são de dar inveja a veteranos do cinema, principalmente por trabalhar temas polêmicos e fazer uma homenagem ao grande mestre Luis Buñuel. Mais do que uma homenagem, Peppermint Frappé é a prova de que Saura se dispõe a entender muito bem todas as suas referências antes de trazê-las para a tela, e isso se comprova em toda a filmografia do diretor, seja nos filmes políticos, nos dramas culturais e históricos e nos musicais. Aqui, o diretor se destaca pela fluidez narrativa. A edição de Pablo González del Amo (um colaborador habitual do diretor, assinando muitas de suas obras entre A Caça, de 1966 e Flamenco, de 1995) compõe de uma forma notável todo o tempo do filme. O paralelismo de algumas cenas e mesmo a recorrência de estradas e paisagens nos ajudam a identificar e abstrair melhor a construção do texto. Já a excelente fotografia de Luis Cuadrado exprime o rigoroso trabalho e atenção que Saura tem em relação à imagem. O uso da cor vermelha, outra constante na filmografia do diretor, aparece aqui também como indicação erótica, em contraste com o branco de alguns cômodos e do próprio figurino das personagens, a indicação da passividade.

Um filme que consegue trazer uma gama de críticas e citações sem ser didático já merece a nossa atenção. Peppermint Frappé, no entanto, vai além. As sequências finais do filme são arrebatadoras. O desfecho da história revela não só as perturbações psicológicas como também nos dá a indicação política dos fatos. O retorno da fantasia com os tambores de Calanda traz consigo a “mulher da Sexta-feira Santa” ressuscitada, como Kim Novak, em Um Corpo Que Cai. Aqui, Geraldine Chaplin encarna a fantasia em pessoa, transformando-se no objeto de desejo e fantasia de Julián, além de dividir com ele a autoria de um crime.

Morte e Amor aparecem mais uma vez de mãos dadas e, a despeito da tímida revelação que tivera durante todo o tempo, aparece no desfecho do filme em um frenesi incontrolável. Após a vingança, surge a descarga de energia, a realização do desejo reprimido, o esquecimento do caminho percorrido até ali. Como na história da humanidade, após um período de dificuldades, o afã que os novos tempos trazem serve para apagar a memória do que aconteceu. O presente é o que importa, e se houve algum sofrimento, certamente é menos importante do que a nova vida que se ensaia. O futuro, no entanto, é incerto, uma vez que realizada a fantasia, sua intensidade arrefece. Essa incerteza posta de um modo tão latente é mais um dos pontos que nos permite classificar esse filme como uma obra-prima, não apenas pelo modo como revela e denuncia essas questões, mas pelo uso que faz de todas as relações imediatas, coisas que estão na vida de qualquer cidadão comum, passível, como as personagens do filme, das mesmas paixões e desejos.

Peppermint Frappé (Espanha, 1967)
Direção: Carlos Saura
Roteiro: Carlos Saura, Rafael Azcona, Angelino Fons
Elenco: Geraldine Chaplin, José Luis López Vázquez, Alfredo Mayo, Emiliano Redondo, Ana María Custodio, María José Charfole, Francisco Venegas, Pedro Luis Lozano, Víctor Manuel Moreno, Fernando Sánchez Polack
Duração: 94 min.

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