Desde os anos 90 que tentam levar o Quarteto Fantástico para as telonas e todos os resultados até aqui – três encarnações em quatro filmes – foram de desastrosos a, no máximo, com boa vontade, medianos. Tivemos a quase mítica produção B de Roger Corman de 1994 que foi finalizada, mas nunca realmente lançada comercialmente e que até conta com visuais interessantes, especialmente considerando seu orçamento, mas nada além disso; dois longas em 2005 e 2007 capitaneados por Tim Story que têm bons momentos, mas poucos demais para realmente valerem à pena; e o completo desastre de 2015 que, muito sinceramente, não tenho nada de bom para dizer. Mas, talvez fazendo jus ao nome da equipe, é a quarta versão da Primeira Família da Marvel Comics, também começo da Fase 6 do Universo Cinematográfico Marvel, que finalmente acerta em cheio em uma obra com delicioso visual retrofuturista e elenco muito bem escolhido, personagens trabalhados com eficiência e uma narrativa que bebe com vontade dos quadrinhos e adapta a clássica Trilogia de Galactus.
Apesar de não gostar de traçar paralelos com outras obras, a proximidade do lançamento de Quarteto Fantástico: Primeiros Passos a Superman, dois filmes importantíssimos para seus respectivos estúdios, justifica minha breve digressão. Como na versão de James Gunn para o Azulão, a visão de Matt Shakman (o diretor de todos os episódios de WandaVision) para o Quarteto Fantástico é esperançosa, alegre, simpática, colorida, e, diria, inocente, verdadeiros acenos para uma época já muito longínqua em que os quadrinhos de super-heróis tinham, quase que por regra, exatamente essas características. Também como em Superman, a história do Quarteto Fantástico, quando o filme começa, já está em andamento, ou seja, eles existem há quatro ano na Terra-828 (uma homenagem a Jack Kirby, que nasceu em 28 de agosto de 1917), ainda que a narrativa em si não use o artifício ousado do in media res de Gunn, ou seja, a ação propriamente dita não se inicia no meio e sim no tradicional começo, mas sem a clássica história de origem e com o universo todo “pronto”, com passado e presente do grupo e um mundo extremamente receptivo ao Quarteto, verdadeiros ídolos de uma Terra pacífica, descrita e desenvolvida como uma utopia. Isso obviamente não significa que a era de filmes sombrios dos super-heróis oriundos das grandes editoras acabou, pois tenho para mim que equilíbrio é tudo e há muito tempo que essa pegada mais clássica não era vista nos cinemas, especialmente não no mesmo mês.
A história, com um roteiro surpreendentemente coeso, apesar de escrito por quatro pessoas, tem como gatilho a descoberta, por Sue Storm (Vanesa Kirby), a Mulher-Invisível, de que ela está grávida, algo que é recebido com extrema alegria por seu marido Reed Richards (Pedro Pascal), o Sr. Fantástico, seu irmão Johnny Storm (Joseph Quinn), o Tocha Humana, e o amigo da família Ben Grimm (Ebon Moss-Bachrach), o Coisa, além do simpático robozinho H.E.R.B.I.E. (voz de Matthew Wood), o R2-D2 desse universo. Mas a alegria deles não dura muito e, com Sue já com a barriga avantajada, eis que a Surfista Prateada (Julia Garner) chega para anunciar que o planeta foi marcado para ser consumido pelo todo-poderoso Galactus (Ralph Ineson), levando o Quarteto Fantástico a embarcar em um foguete para enfrentar a ameaça em algum lugar bem distante do universo. Pode parecer um sacrilégio minha afirmação seguinte, mas a forma como o roteiro conecta Galactus ao Quarteto Fantástico torna seu desfecho melhor do que o que vemos no arco de quadrinhos escrito por Stan Lee e desenhado por Jack Kirby, em 1966, com uma resolução bem mais orgânica e profundamente relacionada com Sue Storm.
Mas o que realmente destaca Primeiros Passos é o casamento do design de produção de Kasra Farahani com a direção de arte capitaneada por Nick Gottschalk e os figurinos de Alexandra Byrne. A construção visual desse mundo que lembra a visão de futuro que obras variadas dos anos 50 e 60 tinham com a pegada de ficção científica (com exceção da Trilogia Guardiões da Galáxia, considero esse o mais “sci-fi puro” dos filmes do UCM) condizente com essas décadas é imediata, criando em um estalar de dedos esse mundo paralelo ao principal que é ao mesmo tempo lindo, moderno e antigo, com cenários práticos de cair o queixo que estabelecem uma espécie de conforto audiovisual que imediatamente engaja o espectador. Claro que a fotografia de Jess Hall com tons pasteis e um filtro que cria uma espécie de delicada “névoa” na experiência e a trilha sonora viva e aventureira, ainda que não exatamente marcante, de Michael Giacchino, contribuem sobremaneira para a impressão geral de captura da essência dos quadrinhos de outrora, fazendo do longa uma jornada prazerosa.
O elenco central foi muito bem selecionado e os papeis de cada um muito bem marcados, com destaque natural para Sue Storm e Reed Richards – nessa ordem – seguido de um Johnny Storm que tem mais destaque do que eu poderia imaginar e, por último, um Ben Grimm que é pura doçura e não pancadaria (que, vale dizer, não faz falta), mas que poderia ter ganhado um arco mais interessante e com uma costura melhor no todo e não apenas um interesse amoroso que não se materializa de verdade. Kirby é uma força da natureza vivendo uma líder inconteste, uma esposa amorosa, mas dura, uma irmã cúmplice e uma amiga fiel, além, claro, uma mãe protetora, mas sem que sua personagem se defina somente por essa ou aquela característica e sim pelo conjunto. Pascal acerta no tom desde o início como um genial cientista pacato que, porém, não perde de vista os horrores que precisa imaginar para poder evitá-los, algo que interpretei como uma piscadela do roteiro à uma versão alternativa de Reed Richards que esse Reed do audiovisual talvez possa um dia tornar-se caso a Marvel Studios tenha coragem (quem lê quadrinhos saberá do que falo). Ajuda muito que a comicidade do filme está organicamente embebida no visual, na dinâmica da família e na relação dela com a utopia em que vivem e não depende de frases de efeito ou momentos que paralisam a história para focar em gracejos, o que abre espaço para os atores serem o que precisam ser para o longa dar certo.
As ameaças são também trabalhadas com cuidado. A Surfista Prateada foi uma escolha acertadíssima de versão do clássico arauto de Galactus para esse filme, já que a personagem em que ela é baseada também vem dos quadrinhos e de uma Terra paralela e, vejam só, o filme se passa em uma Terra paralela, com Garner tendo relativamente pouco tempo de tela, mas mostrando toda sua usual intensidade mesmo recoberta de uma camada digital prateada. Além disso, a escolha de uma arauta e não um arauto permite que o roteiro faça uma boa conexão com o Tocha Humana, redobrando a justificativa lógica para essa escolha. Galactus vem ainda mais diretamente dos quadrinhos e, diferente da “nuvem” do longa de 2007, aqui ele é o gigante arroxeado (que, no original mesmo, era verde e vermelho) que quer devorar o planeta, com as sequências de pancadaria em Nova York capturando muito bem a escala do personagem e o quanto os poderes do Quarteto são insignificantes diante dele, pelo menos até determinado momento no filme, claro. O roteiro, aliás, não só empresta uma dimensão ancestral e uma ameaça crível ao Devorador de Mundos, como não se perde em sequências vazias de ação. A economia na pancadaria que, tenho certeza, muita gente reclamará (já imagino comentários do tipo “mas o Coisa nem tira a camisa para mostrar o corpo de pedra”), é muito bem-vinda aqui, com Shakman lidando bem demais tanto com a pegada clássica de ficção científica que vemos no espaço (a Surfista realmente surfando em chamas e outros elementos é sensacional), como com a “luta contra um kaiju” na cidade favorita dos ataques alienígenas em filmes americanos.
Quarteto Fantástico: Primeiros Passos é… não tem como resistir ao adjetivo… um filme fantástico. Uma obra que renova as esperanças de que a Marvel Studios retomará seu vigor e encontrará mais uma vez seu caminho perdido especialmente na fase anterior. A Primeira Família da Marvel finalmente ganha a versão que merecia e as portas, agora, estão abertas para a ambiciosa e inevitável integração de universos, uma jogada complexa que ainda encaro com os dois pés atrás e que preferiria que acontecesse somente depois de mais um filme solo da equipe em seu próprio mundo. Mas, claro, fica a curiosidade para ver como isso será feito.
Obs: Há duas cenas nos créditos. Uma logo após os nome do elenco que é brevíssima e um tanto quanto descontextualizada e outra lá no final, que conta com um citação de Jack Kirby (e uma explicação sobre a escolha do 828 para batizar o universo em que o filme se passa) e uma bobagemzinha simpática.
Quarteto Fantástico: Primeiros Passos (Fantastic Four: First Steps – EUA, 2025)
Direção: Matt Shakman
Roteiro: Josh Friedman, Eric Pearson, Jeff Kaplan, Ian Springer
Elenco: Pedro Pascal, Vanessa Kirby, Ebon Moss-Bachrach, Joseph Quinn, Julia Garner, Natasha Lyonne, Paul Walter Hauser, Ralph Ineson, Sarah Niles, Mark Gatiss, Matthew Wood, Ada Scott
Duração: 115 min.
