As aventuras sociais e pessoais de mulheres interseccionais em um mundo dominado por novas tecnologias, ativismos que propõem e conseguem mudanças significativas, mas que ainda contempla, diariamente nos noticiários, ou, periodicamente, nas pesquisas científicas, as experiências de misoginia e do preconceito em relação aos avanços conquistados pelo contingente feminino global ao longo de tantas décadas de lutas. É assim que interpreto as duas temporadas divertidas, mas relativamente irregulares, da série Run The World, o tipo de entretenimento para aqueles que, tal como quem vos escreve, são pessoas que se posicionam diante da alteridade para compreender que as existências ficcionais que estão diante da tela são vivenciadas por outras pessoas, isto é, por mulheres, em específico, negras, mas que, no entanto, não me impedem de solidarizar e até se identificar com algumas situações estabelecidas pelo roteiro que equilibra alguns bons momentos com passagens histriônicas e, neste caso, desnecessárias. Ou, talvez, para não ser um espectador injusto, exageradas. Criada por Leigh Davenport, a série ganhou a sua primeira temporada em 2021. Rapidamente, conquistou a seu público pela abordagem despudorada sobre a vida de mulheres contemporâneas, numa produção que reflete o legado e impacto cultural de Sex and The City, mas por um viés afro-americano.
Ambientada no historicamente rico Harlem, em Nova York, a série é um tipo de entretenimento que foca na celebração da amizade, da ambição e dos desafios enfrentados por um grupo de mulheres negras. A trama segue a vida de quatro amigas: Whitney (Amber West), Renee (Bresha Webb), Ella (Andrea Bordeaux) e Sondi (Corbi Reid), jovens mulheres que estão na casa dos trinta e vivendo suas vidas em busca de equilíbrio entre suas carreiras e relacionamentos. Cada uma delas representa uma faceta da mulher moderna. Há a escritora idealista e em busca de seu lugar como voz na indústria. Outra luta para se estabelecer na carreira corporativa, enfrenta desafios com seu papel como mãe e líder. Há também a cheia de charme e confiança, que navega entre as expectativas de sua vida pessoal e sua ambição profissional, bem como a amiga leal e criativa, que traz à tona questões de identidade e autoaceitação, e sexualmente, é um furacão. Em suma, arquétipos de fácil identificação e empatia. Ao longo dos episódios, elas atravessam encontros e desencontros em suas vidas profissionais desafiadoras ou diante da masculinidade tóxica de homens que não se sentem confortáveis com seus posicionamentos.
Aliás, versar sobre Run The World me fez retomar algumas reflexões sobre o conceito de Lugar de Fala, conhecido aqui no Brasil pelo elucidativo livro da filósofa Djamila Ribeiro, uma das publicações que integram a coleção Feminismos Plurais. Em linhas gerais, a partir de suas reflexões, é possível compreender que o lugar de fala se refere a uma posição social que se origina das experiências vividas por um indivíduo, o que implica que a forma como cada pessoa enxerga o mundo e expressa suas opiniões é profundamente influenciada pelas suas vivências e pela sua identidade. Sendo assim, o lugar de fala não se resume à ideia de quem pode ou não falar sobre determinadas questões, mas sim à compreensão de que diferentes experiências trazem diferentes perspectivas. Por exemplo, uma mulher negra tem um lugar de fala distinto em relação a questões de racismo e machismo em comparação a uma mulher branca ou um homem negro. Essa noção é fundamental, pois reconhece que a opressão existe em camadas e que as experiências de indivíduos pertencentes a grupos marginalizados trazem à luz aspectos que, muitas vezes, são ignorados ou minimizados por aqueles que não compartilham das mesmas vivências. Além disso, o conceito também destaca a importância da escuta ativa e do respeito às vozes daqueles que historicamente foram silenciados.
Em muitas sociedades, as narrativas das pessoas que ocupam lugares de fala marginalizados foram historicamente deslegitimadas. Djamila Ribeiro propõe que, ao dar espaço para essas vozes, se constrói uma sociedade mais justa e democrática, onde as subjetividades e experiências diversas são respeitadas e valorizadas. Sendo assim, feita essa abordagem panorâmica do conceito, me posiciono, leitores, diante do meu devido lugar de fala, para analisar as perspectivas ficcionais de Run The World, não necessariamente as posturas ou escolhas de suas personagens. Na primeira temporada, os episódios abordam diversos temas relevantes e atuais. Um dos principais é a amizade feminina. A série ilustra com precisão como as amizades entre mulheres podem ser uma fonte de força, apoio e compreensão em tempos difíceis. À medida que as personagens enfrentam seus próprios conflitos, elas se apoiam mutuamente, demonstrando a importância dessas relações. É o que conceitualmente chamamos de sororidade. Outro tema de destaque, que reflete as conexões com o que já vimos em Sex and The City, é a ambição profissional. Os realizadores não hesitam em mostrar os obstáculos que as mulheres enfrentam nos ambientes de trabalho, desde preconceitos de gênero até a luta por reconhecimento e igualdade.
A forma como cada personagem lida com seu emprego e aspirações profissionais é uma crítica ao nosso contexto misógino que mudou muito, mas ainda precisa de reparos significativos. E, de forma bem interessante, em meio aos excessos de algumas linhas de diálogos ou comportamentos e situações excessivamente clichês, Run The World aborda questões de identidade e autoaceitação. As personagens possuem diferentes histórias de vida e heranças culturais que influenciam suas decisões e atitudes. A série explora como elas navegam por suas identidades e se esforçam para se aceitarem e se valorizarem no mundo moderno, mesmo diante de tantas adversidades. A base dramática criada por Davenport traz à tona a desmistificação de temas que historicamente foram considerados tabus na mídia, como sexualidade, ambição e autoexame. Ao fazer isso, a série oferece uma nova perspectiva sobre a vida e as lutas de mulheres afro-americanas, contribuindo para um diálogo mais amplo sobre representação e inclusão na televisão, algo que o seu ponto de partida, a mencionada jornada de Sex and The City, tratou de fazer direitinho para se adequar aos novos tempos em And Just Like That.
Assim, depois da primeira temporada, a série encerrou a sua história no segundo ano. Alguns arcos ficaram pendentes, mas no geral, digamos que o saldo seja mais positivo que negativo. Há bons momentos em Run The World, sendo o seu grande problema, o estabelecimento de algumas passagens que, em meu ponto de vista, tornam o divertimento muito caricatural, histérico, histriônico. As personagens, sem alguma sutileza, gritam as suas questões, sendo que para nós, espectadores, não é preciso, pois a imagem que delineia olhares, gestos e outras situações já explicitam aquilo que necessitamos compreender dramaticamente na posição que as figuras ficcionais ocupam em determinados momentos. Ao longo da temporada, a narrativa se aprofunda nas questões de raça e classe, refletindo a diversidade e as desigualdades existentes quando as suas personagens frequentemente confrontam preconceitos e estereótipos que ainda persistem, o que traz um novo nível de profundidade às suas histórias. Esteticamente vibrante, com uma trilha sonora empolgante, Run The World diverte. E também reflete. Não tem um texto lapidado e o desempenho do elenco fica na linha entre o bom e o mediano. Mas, ainda assim, garante sequências de entretenimento para todos os públicos e coloca em cena a necessária representatividade, algo negado ao longo da extensa tradição racista estrutural na televisão.
Run The World (EUA, maio de 2021- julho de 2023)
Criador: Leigh Davenport
Direção: Raquel Holder, Nick Wong, Jenée LaMarque, Milecent Shelton
Roteiro: Leigh Davenport, Njeri Brown, Nastaran Dibai, Nya Palmer, Jess Pineda, Ester Lou Weithers, Owen H. Smith
Elenco: Amber Stevens West, Andrea Bordeaux, Bresha Webb, Tosin Morohunfola, Corbin Reid, Cree Summer, Ashley Blaine Featherson-Jenkins, Rosie O’Donnell, Tonya Pinkins
Duração: 16 episódios (40 min).