Uma biografia em fuga do julgamento do seu próprio protagonista. Anacronicamente, lembra Maestro, pois são produções que gritam estética, montam o filme de trás para frente, mas o grande épico musical é não ser testemunhado. O plano-sequência para apresentar Simonal, em contraste com o seu momento de ostracismo nacional, é o suspense do filme, e a entrega é satisfatória para algo que não se pode resolver, e não deve resolver para evitar revisionismo histórico.
Em algum nível, soa como uma obra covarde, ou que não sabe como lidar com o tema, em seus prós e contras, ainda mais num lançamento de ano de eleição, como foi 2018. O filme busca evitar a polarização, mesmo que isso faça parte da narrativa real do cantor. Por isso, para evitar polarização, a história é contada com decalques de notas jornalísticas e editoriais, assim como a sugestão das traições contra a esposa Tereza (Isis Valverde operante), formando uma obra ilustração. O outro plano-sequência para mostrar o fluxo de Simonal (Fabrício Boliveira atuando bem) entre estrelato (durante o show na TV) e a simplicidade (tomar uma dose no barzinho ao lado do show), reforça essa ideia, bem mais que uma dramatização.
Mas aí está o clima da obra. Num processo do século XXI de reabilitar (nome utilizado em artigos científicos e pela imprensa mais crítica) e recolocar Simonal na roda da geração Z, ou fazer alguma nostalgia com os adultos e idosos da geração X, o diretor Leonardo Domingues, com mais trabalhos como montador, tenta suprir qualquer ausência de desenvolvimento com a elipse. E é aí que surge o trunfo da covardia. As aleatoriedades políticas que surgem no segundo ato, como, do nada, ele cantar sobre Martin Luther King, ou, do nada, virar filme de gângster com o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social da Ditadura), ficam menos aleatórias. A montagem consegue fazer uma espécie de sintonia televisiva entre episódios, ainda mais com o final do filme já garantido pelo suspense da introdução. Do mesmo jeito que Simonal é captado do nada pelo produtor Carlos Imperial (Leandro Hassum assertivo), por que os conflitos não podem surgir assim, com o personagem passivo?
Surge, então, um fino drama, envolto da camada racial, literalizada no roteiro, que o esperto e malandro, por ser negro, não pode errar uma vez. É a regra do racismo, infelizmente. Apesar desse “jeitinho” que Domingues arranja para sua narrativa frouxa, ainda é um caldeirão de temas, que, felizmente, confluem no ato final. A sacada de apresentar e reapresentar Simonal no primeiro e último ato coloca os pontos nos is, ao menos para respirar na situação política. O filme até toma um lado, acusando O Pasquim, e deixa os militares com as sequências neo-noir bem elaboradas de um interrogatório. Mas outros artistas ainda o defendem, os mesmos questionáveis por não se promoverem politicamente – Elis Regina, Erasmo Carlos.
Bem, é uma produção Globo Filmes (isentona) e TV Zero (mais politizada), e a, não ironicamente, produtora mais nova chamada Pontos de Fuga. Será que poderia ser diferente? Até poderia, pois a narrativa cria cenas suficientes para aprofundar melhor o cancelamento do cantor, como o momento tenso de Simonal se abaixando para o agente do DOPS para pegar um papel, materializando uma hierarquia da Ditadura, e racial. Porém, a própria história sobre a queda artística envolve problemas com a Rede Globo.
Ao final, da mesma forma que a Ditadura Militar é um tema sensível para ser julgado em praça pública, mesmo que factualmente não haja dúvida sobre a opressão da época, a grande realidade é que um X-9, ainda mais negro e favelado, cantando bossa nova com swing… são muitas camadas em jogo que uma biografia, estranhamente, foi mais feliz em fugir de julgar e sim ilustrar um dos maiores cantores brasileiros.
Ps: a OAB já fez investigações nos documentos do DOPS que mostram que Simonal não foi dedo duro. “A Comissão não é um tribunal para decidir sobre a questão formulada, mas proferiu sua conclusão baseada na força moral da OAB, entidade à qual se vincula”. Mas nada temos certeza sobre o sequestro do contador.
Simonal – Brasil, 2018
Direção: Leonardo Domingues
Roteiro: Victor Atherino, Leonardo Domingues
Elenco: Fabrício Boliveira, Isis Valverde, Leandro Hassum, Caco Ciocler, Mariana Lima, Cláudio Mendes
Duração: 105 min.