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Crítica | Sorte Cega

por Marcelo Sobrinho
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“Bem dito, velha toupeira! Você trabalha tão depressa no interior da terra! É uma notável sabotadora!”

William Shakespeare em Hamlet – Ato I, Cena V.

Quando se fala no nome de Krzysztof Kieslowski, é bastante natural que se lembre de suas duas obras mais monumentais – o Decálogo e a Trilogia das Cores. É com justiça que se faz essa associação, já que são duas das maiores obras realizadas para o cinema, tanto por sua complexidade temática quanto por sua atemporalidade, debruçando-se sobre algumas das questões mais fundamentais da espécie humana, como o sentido da existência, a morte, o destino e a consciência individual e coletiva. Entretanto, há uma obra na filmografia de Kieslowski que talvez não receba toda a atenção que merece. Não digo que ombreia com o Decálogo ou com a Trilogia das Cores, mesmo porque essas são obras muito mais extensas, em que o diretor polonês pôde esmiuçar mais ideias. Mas Sorte Cega, longa-metragem de 1981 e censurado até 1987, é também uma obra-prima e deve ser lembrada como tal.

O grande tema de Sorte Cega é o destino. A liberdade, que incide sobre o homem como uma condenação inexorável, segundo o francês Jean-Paul Sartre, atemoriza e angustia. Poder escolher entre diversos caminhos, tendo cada instante o valor de uma escolha irreversível, nos humaniza, mas também pesa sobre nossos ombros. O grito do protagonista Witek (Boguslaw Linda) é de horror diante dessa consciência. O mais humano dos gritos, que é o grito daquele que se percebe livre. Kieslowski constrói três possíveis histórias para o seu personagem, todas iniciadas a partir de sua tentativa de pegar um trem em movimento. Essa cena, que inicia cada uma dessas possibilidades de vida, é magistral. A moeda que rola pelo chão é o acaso que se apresenta, oferecendo suas oportunidades. O close-up com que Kieslowski enquadra a mão de Witek tentando alcançar a maçaneta do trem é uma genial metáfora do destino fugidio, que ora se deixa alcançar, ora escapa, em uma fração de segundos.

As três possibilidades de vida de Witek são bastante distintas. Na primeira, o jovem é membro do partido comunista polonês e envolve-se no complexo contexto de acirramento político que fazia parte desse momento histórico na Polônia dos anos 80. O partido é apresentado como uma organização burocrática e ineficaz, o que certamente contribuiu para a censura do filme. Witek assiste a um discurso de um velho ex-militante político, que exalta a esperança em um mundo melhor, mas confessa a frustração da velhice ao ver malograda a tentativa de fazer política com imaginação. O clima de perseguição e antagonismo que encontrou, ao optar por esta primeira posição política, volta-se contra ele mesmo e Witek termina profundamente frustrado, perdendo o amor de sua namorada e jogando, com fúria, sua mala ao chão.

Em sua segunda vida, ele está do lado oposto, participando de movimentos de resistência ao governo. Envolve-se em uma briga na estação de trem e vai preso. Na prisão, mais uma excelente cena é apresentada. Ele e seus colegas encontram uma garrafa enterrada no pátio. Nela, diversas promessas escritas por um grupo de amigos, que a abririam 20 anos depois. A garrafa fora reaberta e as antigas promessas não se concretizaram, demonstrando que a vida é um encontro imprevisível entre o acaso e as escolhas individuais, com resultados complexos e que a visão humana não alcança. Hegel costumava utilizar a excelente metáfora da toupeira. Animal menosprezado, a toupeira tem uma visão bastante limitada e passa boa parte da vida cavando sob a terra. O acaso é, segundo Hegel, como uma toupeira, operando no subsolo, sem ser notado, para um dia emergir e exigir escolhas em situações não previstas. Witek novamente não encontra satisfação e é acusado de traição por seus antigos correligionários.

A terceira possibilidade para a vida de Witek é a não escolha de qualquer posicionamento político. Ele se casa e opta pela carreira médica. Recusa os modelos rígidos que arregimentavam os jovens em seu tempo e opta por uma vida completamente diversa. Nessa terceira e última possibilidade, se encontra a grande chave para o entendimento do filme em todo o seu poderio filosófico. Após visitar uma enferma grave, em seu leito de morte, Witek vê dois homens praticando malabarismo com um número incontável de bolas. Ele pergunta à anfitriã porque fazem aquilo e a resposta o surpreende: “Nenhuma razão. Parece que ninguém mais no mundo consegue fazer malabares assim”. É estupenda a imagem que Kieslowski cria nesta cena, em que dois homens encontram, na atividade que praticam há 10 anos, um sentido fechado em si próprio. Esse sentido é individual e existe somente para eles, ou seja, é irreprodutível por outros. Por isso, são os únicos capazes de realizar malabares da forma que o fazem e Witek também fracassa na única tentativa que faz.

O final da obra é um tanto enigmático, já que ela termina em um anticlímax um tanto difícil de digerir. Mas penso que o diretor não poderia ter encerrado Sorte Cega de maneira mais apropriada. Após apresentar a proposta de sentido da existência em uma perspectiva individual e irreprodutível, o filme me parece desfazer qualquer possibilidade de engano em seu desfecho. Witek encontra em sua terceira história não uma vida de felicidade perene, pois o filme não trata essencialmente da felicidade, mas sim da autenticidade. O jovem médico encontra na habilidade dos malabaristas a ideia de uma vida autêntica. Mas quando Kieslowski recusa um final feliz, ele demonstra que essa vida também não elimina a dimensão trágica da existência. E a obra se torna ainda mais brilhante por sua corajosa conclusão.

Sorte Cega é um filme instigante, em que Krzysztof Kieslowski emprega suas ideias com uma linguagem cinematográfica rica e cheia de recursos visuais que mobilizam o espectador a refletir sobre suas propostas. A trilha sonora, com seu tema principal, é muito marcante e conquista com facilidade. Mas o que há de melhor em Sorte Cega é mesmo sua abordagem filosófica muito consistente. O cinema existencialista do polonês oferece uma visão bastante otimista e encorajadora ao nos revelar como seres jamais rendidos pelo acaso. A moeda rola pelo chão da estação e seu resultado é fortuito, mas alcançar ou não o trem e bancar todas as consequências de um ou outro caminho será sempre um exercício da liberdade humana.

Sorte Cega (Przypadek) – Polônia, 1981
Direção: Krzysztof Kieslowski
Roteiro: Krzysztof Kieslowski
Elenco: Boguslaw Linda, Tadeusz Lomnicki, Zbigniew Zapasiewicz, Boguslawa Pawelec
Duração: 114 min

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