- Há spoilers.
Focando a história que se passa efetivamente na cidade de South Park nas críticas à emergência da inteligência artificial, Trey Parker conecta Sora Mais com O Wok Já Era, o quarto episódio da temporada anterior, mais especificamente com a manipulação de Butters por Red, seu crush, para que ele a presenteasse com um Labubu especial que acaba sendo usado em um ritual satânico, que, se não é, deveria mesmo ser o principal uso desse horroroso objeto de desejo que, conforme foi anunciado recentemente, será transformado em um longa-metragem, por mais inacreditável que isso pareça para mim. Procurando vingança, Butters usa a inteligência artificial Sora 2, desenvolvido pela OpenAI, para criar um deepfake em que Red comete ignomínias e que, claro, logo viraliza por toda a escola, levando a menina ruiva a dar o troco e, com isso, iniciando uma linha narrativa que trabalha muito bem a fronteira entre realidade e ficção, entre o falso e o verdadeiro.
Afinal, se a inteligência artificial é algo que preocupa em diversos níveis diferentes – mas nenhum deles apocalíptico… ainda – e que, portanto, é alvo perfeito para uma abordagem satírica por parte da série, a maneira como Parker faz isso aqui envereda mais pela completa incapacidade de as pessoas pararem para pensar um pouco sobre o que assistem internet afora antes acreditarem piamente como completos parvos ou de esbravejarem “é I.A.” ou “não é I.A.” em mais um exemplo de como as redes sociais tornaram-se palcos para manipulação e debates polarizados que muitas vezes sequer fazem sentido. Para encapsular essa incapacidade, Parker se socorre do exagero cômico ao destacar a investigação do departamento de polícia de South Park que, basicamente, acredita em absolutamente tudo o que assiste, inclusive e especialmente procurando culpar personagens ficcionais por molestar crianças, algo que começa com o coitado do Totoro, fazendo com que até mesmo advogados do Estúdio Ghibli apareçam para tentar impedir o uso de sua propriedade intelectual e chega até o ponto em que os policiais se fantasiam de Rocky e Bullwinkle para “desvendar o mistério”.
Confesso que fiquei com receio sobre como o episódio conectaria essa história de inteligência artificial com a linha narrativa que percorre as duas temporadas da série em 2025, ou seja, o governo satânico de Donald Trump, mas meu receio foi afastado quando a história paralela de Cartman como parte do plano de JD Vance para abortar o Anticristo ganhou o singelo contorno de sequestro disfarçado por I.A., o que combinou perfeitamente com a temática. Mais ainda, o caso de amor do vice-presidente com o presidente finalmente se consumando e sendo flagrado por câmeras escondidas na Casa Branca que a Fox News precisa reportar com todo o pesar possível, para, em seguida, desmentir feliz da vida com base em “é I.A.” é a cereja no bolo dessa convergência esperta – e até improvável – de histórias completamente bizarras que saíram da mente dodói de Trey Parker. Afinal, nunca mais conseguirei ouvir a deliciosa breguice I Want to Know What Love Is, do Foreigner, da mesma maneira novamente agora que a canção se tornou tema do tórrido romance adúltero de Vance e Trump ou, claro, lembrar de Totoro sem imaginar Butters fazendo o que a I.A. comprovou que ele fez com o bicho mágico da região rural do Japão.
South Park continua firme e forte em sua exploração explícita e inclemente do desgoverno americano, fazendo o máximo para oferecer algo que consiga ser mais estranho que a realidade, o que nem sempre a série consegue, claro. E tudo fica melhor quando Parker não se esquece dos personagens fixos da série, usando-os como avatares de assuntos do momento como a perfídia que é a invasão da inteligência artificial, mas com uma abordagem esperta e original que vem escancarar a burrice natural dos seres biológicos que, como os lemingues de lenda se jogando no precipício, acreditam em qualquer coisa que ouvem ou veem por aí ou, em alguns casos, passam a não acreditar em mais nada, o que é tão hilário quanto.
South Park – 28X03: Sora Mais (South Park – 28X03: Sora Not Sorry – EUA, 12 de novembro de 2025)
Direção: Trey Parker
Roteiro: Trey Parker
Elenco (vozes originais): Trey Parker, Matt Stone, April Stewart
Duração: 22 min.
