- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios da série e, aqui, de todo nosso material sobre Star Trek.
Seguindo a abordagem alternada da série, Shuttle to Kenfori é uma história oposta à aventura mais bobinha e episódica de Wedding Bell Blues, tendo como ponto de partida a condição clínica de Batel, que continua sofrendo os efeitos devastadores do DNA Gorn incubado em seu corpo desde a temporada anterior. Ao invés de buscar uma solução tecnocrática ou um milagre de última hora como vimos muitas vezes na franquia, o roteiro opta por aprofundar o dilema com realismo narrativo: a única possível “cura” — encontrada num laboratório abandonado em um planeta proibido pela Federação e os Klingons — não remove a mutação, mas a integra de forma definitiva ao organismo de Batel. É uma proposta corajosa do roteiro, pois trata-se de uma “vitória” com um altíssimo custo, tanto físico quanto moral.
Com um ponto de equilíbrio mais sombrio e maduro do que o segundo episódio, o capítulo dessa semana entrega uma trama que mescla elementos de horror biológico, política intergaláctica e dilemas éticos com habilidade e intensidade emocional. Novamente tentando evocar atmosferas próximas de Alien ou The Thing, temos um clima autocontido de terror espacial, mas filtrado pelo olhar da Federação. A direção de Dan Liu não é lá a mais habilidosa para criar tensão, mas o trabalho é funcional, usando o laboratório onde M’Benga e Pike desembarcam para carregar aquela sensação de decadência e ameaça que é mais eficaz pelo que não se vê: corredores escuros, sons à distância, máquinas abandonadas e, claro, os trabalhadores transformados em criaturas vorazes, zumbis disformes com reminiscências dos piores pesadelos da ficção científica.
Os mortos-vivos são mais interessantes conceitualmente do que na prática, servindo como antagonistas secundários de pouco valor para a ação ou para a tensão (depois que a curiosidade por eles passa, a sensação é similar ao de TWD, em que as criaturas oferecem pouca periculosidade). O que, de fato, segue intrigante por trás dos zumbis é senso de violação ética, de que há algo de podre naquela missão e de que os personagens sentem isso. É nesse clima que entra em cena Bytha, uma personagem Klingon cuja presença no episódio parece à primeira vista abrupta, mas que ganha contornos simbólicos importantes à medida que a história avança. Filha de um general morto por M’Benga, Bytha representa não apenas a vingança e a honra de sua casa, mas também uma contradição moral que o episódio não tenta resolver com simplismo.
Novamente, a ação de Liu não entrega grandes momentos visuais, mas tematicamente tudo nesse bloco (do laboratório, da escolha clínica com Batel, e da ambiguidade com o contexto da guerra entre M’Benga e Bytha), o roteiro apresenta algumas decisões difíceis, consequências ambíguas e uma carga emocional que atinge tanto os protagonistas quanto o espectador. A cena em que Pike confronta o médico por ter omitido a informação é carregada de frustração, e ainda mais potente é a decisão consciente de Batel de seguir com o tratamento mesmo assim. Não é heroísmo simplificado, é sobrevivência, é amor, é desespero. E narrativamente falando, abre um leque curiosíssimo para o restante do arco de Pike (e da equipe como um todo, se esse segredo sair da Enterprise).
Paralelamente à ação no planeta, temos o núcleo na nave, com destaque para a tensão crescente da insubordinação de Ortegas. A escolha de dar foco a esse conflito é acertada, trazendo tópicos caros à franquia, como hierarquia, lealdade e a necessidade de respeitar certos limites para evitar um incidente diplomático. Ortegas, movida por senso de urgência e emocionalidade, desobedece diretamente ordens, expondo a nave e toda a missão. O que sai disso é um bloco espacial visualmente divertido e que contrasta bem com o núcleo mais introspectivo no planeta, dando um dinâmica narrativa muito boa, além de seguir desenvolvendo o desconforto emocional de Ortegas desde o conflito com os Gorns.
Voltando à trama principal, o clímax dramático do episódio, com Batel aceitando a fusão com o DNA Gorn, não é apenas narrativamente eficaz, mas eticamente desconfortável, e por isso mesmo interessantíssimo. A série propõe aqui que nem todas as vitórias são limpas e que a fronteira entre salvar alguém e condená-lo a uma nova existência pode ser mais tênue do que gostaríamos de admitir nesse universo, algo que vimos diversas vezes na franquia. Ao contrário de episódios que limpam seus conflitos com tecnobaboseiras ou intervenções milagrosas, Shuttle to Kenfori olha o abismo no olho e pergunta se ainda somos nós quando sobrevivemos a qualquer custo. O final, com a tensão ainda pairando na ponte da Enterprise, não fecha o episódio com um laço bonito. Pelo contrário, amplia os desdobramentos que virão, tanto com Batel quanto com Ortegas, sugerindo uma temporada consequente, onde as ações de cada um realmente importam. E isso, dentro da estrutura clássica de Star Trek, é uma vitória. Mesmo com ressalvas, principalmente na direção que deixou a desejar na minha visão, o terceiro episódio é maduro e provocativo o suficiente para deixar uma boa marca na série.
Star Trek: Strange New Worlds – 3X03: Shuttle to Kenfori (EUA, 24 de julho de 2025)
Desenvolvimento: Akiva Goldsman, Jenny Lumet, Alex Kurtzman (baseado em personagens criados por Gene Roddenberry)
Direção: Dan Liu
Roteiro: Onitra Johnson, Bill Wolkoff
Elenco: Anson Mount, Ethan Peck, Jess Bush, Christina Chong, Celia Rose Gooding, Melissa Navia, Babs Olusanmokun, Rebecca Romijn, Martin Quinn, Carol Kane, Dan Jeannotte, Melanie Scrofano, Cillian O’Sullivan
Duração: 51 min.