- Leiam, aqui, a crítica com spoilers.
A tarefa de James Gunn era muito difícil, talvez uma das mais difíceis de tempos recentes em grande estúdios, pois ele precisava recomeçar um universo inteiro de super-heróis a partir de um filme solo do Superman, universo esse cuja versão anterior naturalmente conta com um exército de defensores. Quando o diretor e roteirista estourou nesse gênero com Guardiões da Galáxia, ninguém tinha expectativa alguma, pois não só poucos sabiam quem eram os Guardiões, como ele estava lidando com uma obra em um “cantinho” do Universo Cinematográfico Marvel que, se desse errado, poucos ligariam. Agora, a expectativa – mãe da decepção, vale lembrar – não poderia ser mais alta tanto por parte do público, quanto por parte dos engravatados do estúdio, todos prontos para culpar Gunn por qualquer coisa que aconteça de negativo, mesmo que não dependa dele.
O que posso dizer, logo na largada e com um sorriso no rosto, porém, é que, no que esse recomeço de universo depende de Gunn, ele entregou tudo o que podia e devia entregar e talvez até mais um pouco, pois seu Superman consegue ter escala gigantesca e ambiciosa, mas sem esquecer do lado pessoal do personagem; consegue criar de estalo um mundo crível e coeso já bem povoado por meta-humanos e outros personagens ainda mais “coloridos” como Lex Luthor (Nicholas Hoult) que não parece tumultuado e que mantém o Azulão no foco; consegue capturar a essência clássica do personagem sem ser reverencial demais ao que veio antes, ou seja, dando-lhe uma aura própria e bem marcada como tal e, finalmente, consegue fazer um “filme de quadrinhos” como há muito não se via, com a plasticidade de Sam Raimi em sua Trilogia Homem-Aranha e a abordagem humana e esperançosa de Richard Donner no clássico Superman, de 1978. Em outras palavras, se o Universo Cinematográfico DC 2.0 (é assim que eu o chamo, me deixem) não pegar no tranco com essa excelente introdução, então é melhor fechar as portas do DC Studios e vender tudo para algum concorrente.
A dimensão dos planos macro de James Gunn já fica evidente com o expediente simples, mas eficiente de um letreiro nos segundos iniciai que dá conta da presença de meta-humanos na Terra e da origem do Superman (David Corenswet) ao som da trilha imbatível de John Williams para o personagem conforme novo arranjo de David Fleming e John Murphy, somente para, em seguida, apresentá-lo todo arrebentado na Antártida depois de ser espancado pelo vilão Martelo da Borávia, pedindo ajuda para Krypto, o super-cão, que é sem dúvida um “bom garoto”, mas um tanto quanto excitado e desobediente demais, para levá-lo até seu lar, a Fortaleza da Solidão que, porém, nunca é chamado assim. De uma tacada só, vemos um Superman que não é invencível – sempre uma boa notícia, pois é muito difícil contar uma história com um protagonista sem fraquezas mais fáceis de serem exploradas do que kryptonita ou artifícios do tipo – em uma situação calamitosa que, porém, é cercada e informada de momentos jocosos que constroem mitologia, seja a relação do herói com o despenteado cãozinho de capa (que tem uma explicação lá no final para ser como é), como com os androides azuis e também de capa que funcionam como ajudantes, tudo isso com com um fotografia muito bonita e repleta de cor que conversa muito bem com a jovialidade e a inocência do Superman.
Há, de imediato, muito coração no que Gunn escreve, além de uma invejável capacidade de comprimir toda a mitologia do personagem e daqueles que gravitam ao seu redor em poucos minutos de projeção, e isso sem recorrer a um segundo sequer de texto expositivo artificial, do tipo que basicamente freia a projeção, pega o espectador na mão e explica tudo em detalhes como se ele fosse um idiota. Na verdade, a sacada de Gunn é saber quando não explicar ou sequer mencionar mais do que de passagem algum nome ou algum aspecto que só os leitores de quadrinhos (uma parcela minúscula de quem vê filmes do gênero) acharão importante. Ele parte da premissa que nem tudo precisa ganhar definição dicionarizada e, por exemplo, apresenta a Gangue da Justiça, formada pelo Lanterna Verde Guy Gardner (Nathan Fillion), Mulher-Gavião (Isabela Merced) e Senhor Incrível (Edi Gathegi) sem rodeios, abraçando a linguagem dos quadrinhos e por vezes a galhofa sem medo de ser feliz, como é o caso dos hilários gritos “gaviônicos” da Mulher-Gavião.
Aliás, meu maior receio era que o novo filme do Superman não fosse um filme do Superman em razão do elenco inchado e da presença de outros meta-humanos para dividir tempo de tela como os três citados, além de mais alguns, como o Ultraman (cujo ator não relevarei o nome para manter a crítica sem spoilers) e a Engenheira (María Gabriela de Faría), capangas de Lex Luthor. Mas esse meu medo tornou-se, ao revés, a maior qualidade do filme, pois, se Gunn já havia se mostrado muito capaz em lidar com filmes repletos de seres superpoderosos, aqui ele não só repete a dose como nunca, em momento algum perde o Superman de foco, fazendo com que os demais meta-humanos complementem e não detraiam da experiência. E, como acontece com o que explicar ou não, Gunn sabe muito bem que personagens levar para o primeiro plano e quando, com o filme nunca realmente parecendo perdido. Se Lois Lane (Rachel Brosnahan, muito à vontade) ganha o devido destaque de maneira mais permanente e natural, Jimmy Olsen (Skyler Gisondo, sempre cômico) tem sua “ascensão” justificada dentro da narrativa, ainda que de maneira um tanto quanto conveniente demais, com Perry White (Wendell Pierce sendo Wendell Pierce) permanecendo em segundo, até terceiro plano, mas nunca “jogado para escanteio”.
No final das contas, o filme não reinventa a roda e gira em torno do clássico e eterno conflito entre Superman e Lex Luthor, com os dois atores mergulhando muito bem em seus respectivos personagens de maneira reminiscente ao que os inesquecíveis e saudosos Christopher Reeve e Gene Hackman fizeram com eles no final dos anos 70. Corenswet usa sua estatura e timbre de voz a favor tanto de Clark Kent quanto do Superman, com a diferença entre os dois sendo tanto física quanto tecnológica, estabelecendo um personagem que é mais humano que os humanos, enquanto que Hoult, completamente careca, o que ajuda a destacar olhos cada vez mais obcecados, é um crescendo de genialidade histriônica que parece ter na destruição do Superman sua única razão de ser. E é muito bacana notar como Gunn usa essa linha narrativa básica para transformar seu filme em uma obra fortemente política e atual que fala de xenofobia, imperialismo e intolerância; da relação perversa entre interesses públicos e privados; e, sobretudo, sobre a manipulação de informações e em nossa inacreditável capacidade de acreditar em qualquer coisa que nos “mandam” acreditar.
O que realmente faltou em Superman foi uma luta física climática que fizesse jus ao escopo do longa e dos poderes do protagonista. O que vemos é uma pancadaria genérica que perde a graça muito rapidamente, mas que continua genérica por longos minutos, sem realmente dizer a que veio para além de uma “revelação” um tanto quanto óbvia sobre o Ultraman e uma finalização lógica dentro do que foi construído, mas miúda demais para o que poderia realmente ser. Só para se ter uma ideia, a sequência de luta do Senhor Incrível contra os minions de Luthor em uma praia é bem mais interessante do que a do Superman ao final. Fica aquela impressão do “ok, agora já chega, temos que acabar o filme, então vamos correr”, algo que não é incomum na filmografia de Gunn, mas que se faz sentir aqui com um pouco mais de força. Outro ponto que não funcionou foi o uso de lente grande angular em close-up na fotografia de Henry Braham em algumas sequências, notadamente as de voo. Não, não, esqueçam isso de “não funcionou”. Estou mentido ou, pelo menos, sendo eufemístico demais. Não é que não tenha funcionado, mas sim que essa escolha do cinegrafista, certamente com um empurrãozinho de Gunn, foi inacreditavelmente horrível, pois acabou deformando o corpo do Superman e outros personagens, criando quase que um Vale da Estranheza que arranca brutalmente o espectador da imersão toda vez que acontece e não são poucas vezes. Aqui, a produção quis ser diferentona, mas só conseguiu mesmo ser feia.
Mesmo assim, Superman é o recomeço que o Universo Cinematográfico DC merecia (diferente do recomeço oficial, aquela coisinha ruim chamada Comando das Criaturas) e uma grande maneira de se abordar seu protagonista, desvencilhando-se da pegada mais sombria – mas igualmente válida, vale dizer, pois O Homem de Aço é um filme muito bom – anterior e entregando um retorno leve, esperançoso e colorido do maior super-herói dos quadrinhos ao audiovisual. James Gunn começou muito bem sua jornada. Que venham os próximos filmes e séries!
Obs: Há duas cenas pós-créditos, uma logo depois dos nomes do elenco e outra bem lá no final. Nenhuma das duas é reveladora ou importante, mas assistir aos créditos é um hábito que todos deveriam ter!
Superman (Idem – EUA, 2025)
Direção: James Gunn
Roteiro: James Gunn
Elenco: David Corenswet, Rachel Brosnahan, Nicholas Hoult, Edi Gathegi, Nathan Fillion, Isabela Merced, Anthony Carrigan, Pruitt Taylor Vince, Neva Howell, Wendell Pierce, Skyler Gisondo, Beck Bennett, Mikaela Hoover, Christopher McDonald, Sara Sampaio, Terence Rosemore, Frank Grillo, María Gabriela de Faría, Milly Alcock, Sean Gunn, Grace Chan, Alan Tudyk, Michael Rooker, Pom Klementieff, ,Jennifer Holland, Bradley Cooper, Angela Sarafyan, Stephen Blackehart, Michael Rosenbaum, Will Reeve
Duração: 129 min.