No sexto livro da série literária Diários de um Robô-Assassino, Martha Wells reverte ao seu modelo anterior de obras mais curtas, deixando de lado, pelo menos por agora, sua tentativa de escrever um romance mais parrudo como foi Efeito de Rede. No entanto, em Telemetria Fugitiva, ela pela primeira vez experimenta não seguir a cronologia da história de seu fascinante protagonista robótico, antissocial e amante de séries de TV, com a história se passando em algum momento entre Estratégia de Saída, o quarto livro, e Efeito de Rede, o quinto. Além disso, a autora se arrisca em um normalmente muito querido subgênero literário, o de drama investigativo, mais conhecido como whodunnit, em que o Robô-Assassino precisa relutantemente investigar o assassinato de um viajante não identificado que ele descobre na Estação de Preservação.
Para tornar essa narrativa possível, Wells impõe limites ao protagonista, já que seu artifício investigativo normais, ou seja, seu acesso irrestrito a absolutamente tudo na estação, de câmeras de segurança a dados dos computadores de todos ali, passando por acesso a todos os seres robóticos do lugar, tornaria seu trabalho muito fácil e a autora seria obrigada a criar uma série de situações artificiais para obstaculizar o trabalho do Robô-Assassino. No lugar de atravancar a narrativa com esses obstáculos, Wells logo de cara estabelece um conflito entre seu querido e muito humano robô com Indah, a Oficial Sênior de Segurança da Estação, que não quer o envolvimento dele e, mais ainda, desconfia de Murderbot. Como é a Dra. Mensah que pede que o robô se envolva, ela consegue tabular um acordo com Indah que determina não só que Murderbot terá que se manter incógnito na estação, como ele também não poderá hackear os sistemas da estação. Com isso, as regras do jogo são estabelecidas de antemão e o rabugento robô, por mais que queira, tem um senso de moralidade apurado e não se desvia do que foi acordado, levando a narrativa ao ponto que Wells quer, ou seja, transformar seu protagonista, temporariamente, em um clássico detetive particular daqueles em constante conflito com as autoridades locais só que, claro, em uma ambientação completamente sci-fi.
E, mantendo-se fiel às histórias desse tipo, Martha Wells cria mistérios em cima de mistérios, alianças e inimizades a cada esquina, reviravoltas aqui e ali e tudo com a indefectível narração do Robô-Assassino que, claro, naturalmente empresta aquela atmosfera noir ao que ela escreve, ganhando a dupla função de servir de extravasamento dos sentimentos da máquina mais humana de tempos recentes na literatura com as explicações necessárias à la Raymond Chandler ou, talvez, aproximando-se da ficção científica, de Rick Deckard na versão de cinema de Blade Runner. que, mesmo alvo de polêmicas, pessoalmente gosto muito. Diria até mesmo que o tamanho do livro é perfeito para que a autora se mantenha focada na veia investigativa, sem recorrer a desvios que um romance de mais de 300 páginas fatalmente exigiria, valendo afirmar que mesmo assim ela consegue inserir e trabalhar assuntos que tocam diretamente situações geopolíticas que vivemos hoje em dia no mundo.
Apesar de profundamente enraizado no universo criado pela autora, com direito a corporações malignas, alta tecnologia e, claro, as adoradas séries de TV que o protagonista adora assistir para não ter que lidar com humanos apesar de secretamente amar pelo menos alguns deles, diria que Telemetria Fugitiva é uma obra consideravelmente autocontida, que poderia ser facilmente apreciada tanto por quem nunca leu nada da série literária, como por quem porventura ainda não tenha chegado no quarto livro. Afinal, sua localização temporal é apenas por conveniência e lógica dentro da estrutura geral, já que vem depois do fim do grande arco narrativo inicial formado pelos primeiros quatro livros e antes do começo do segundo arco que desloca o Robô-Assassino para bem longe da PreservationAux.
Mais uma vez, mesmo experimentando em um gênero específico que ela nunca tentara antes na série, Martha Wells acerta com essa nova aventura de Murderbot. Não é uma história que impulsiona a narrativa macro, obviamente, mas ela certamente desenvolve o protagonista, emprestando-lhe mais características humanas e dando tempo aos leitores para se refestelarem sobre essa belíssima contribuição para a literatura pop de ficção científica desse século. Tomara que a autora continue esse caminho de experimentação com outros gêneros!
Telemetria Fugitiva (Fugitive Telemetry – EUA, 2021)
Autoria: Martha Wells
Editora original: Tor.com
Data original de publicação: 27 de abril de 2021
Páginas: 172