O final do primeiro The Last of Us poderia ter continuado em aberto. Seria cruel nunca sabermos o que acontece com Joel e Ellie depois da decisão complexa dele em não contar o que ocorreu de verdade em Salt Lake City, mas o desfecho é apropriado para a jornada de luto e sacrifício de um dos melhores protagonistas da história dos games. A sequência, portanto, carrega um questionamento em sua gênese: como continuar uma trama “terminada”? Seria fácil fazer não uma, mas várias continuações com Joel e capitalizar no sucesso do personagem, mesmo como coadjuvante de uma crescida Ellie. Mas tal conceito é um desserviço a tudo que o primeiro jogo representa, razão pela qual The Last of Us Part II escolhe uma rota ousada: tirar Joel do tabuleiro, matando-o de uma maneira brutal e agressiva logo no início do jogo. É uma decisão chocante e difícil de engolir para quem esperou anos para jogar com Joel novamente, mas à medida que a narrativa progride, a escolha não apenas faz sentido, como também eleva o patamar da franquia, tanto em termos narrativos, quanto de gameplay.
Estou me adiantando, porém. No início do jogo, vemos nossa dupla inesquecível quatro anos depois dos eventos da primeira parte, com uma adulta Ellie visivelmente enraivecida com Joel. Nesse bloco inicial em Jackson, aprendemos um pouco sobre a comunidade, vemos rostos conhecidos, como Tommy e Maria, e figuras novas, como Dina e Jesse, além de sermos apresentados à elevação técnica da Naughty Dog, criando um universo rico de texturas, tanto em locações, quanto nas microexpressões dos personagens. Tudo soa tão real e natural, não apenas em termos de gráfico ou motion capture, algo que a cada ano fica assustadoramente próximo da realidade em grandes jogos, mas na engenharia de som nas ações dos personagens no ambiente; na sensibilidade dos controles durante as movimentações; e na imersão de uma obra que não é de mundo aberto, mas que traz as sensações de grandes áreas e de exploração de jogos desse tipo.
Durante uma patrulha, Joel e Tommy salvam Abby, uma mulher que chegou próxima de Jackson com um grupo de uma milícia paramilitar chamada WLF, com intenções de encontrar e matar Joel. Isso eventualmente acontece, em uma sequência horrenda que dita o tom de vingança da trama; tanto da parte de Abby e companhia, que descobrimos estarem buscando retribuição por conta dos eventos de Salt Lake, quanto de Ellie e Tommy, que juram matar os assassinos de Joel. No entanto, mais do que uma simples narrativa de vendetta, The Last of Us Part II não apenas subverte as expectativas com a brusca morte do protagonista tão querido, como também revira totalmente o que esperamos de uma trama dessa ordem, jogando com perspectivas, te colocando em posições desagradáveis e forçando o público a ativamente entender o outro lado dessa história. É tudo bastante provocativo, mas dramaticamente inteligente e um uso único da linguagem de gameplay para construir uma narrativa.
O primeiro elemento que chama a minha atenção é a não linearidade da obra. Uma arte normalmente com objetivos bem definidos, é refrescante acompanhar e participar de uma história que alterna entre espaços temporais com destreza e com encaminhamentos dramáticos claros (nenhuma elipse, nenhuma transição e nenhum núcleo no passado é aleatório). No bloco de Ellie, é particularmente notável as inserções de flashbacks que agregam ao contexto dos eventos em tela e que aprofundam o drama de luto da personagem, incluindo alguns momentos que estruturalmente soam como memórias torturantes vindo à tona (a música é uma corrente bonita nesse sentido, com destaque máximo para o doce e melancólico trecho dos presentes de aniversário de Joel). A participação de Dina na jornada serve como um elemento para trazer certos diálogos à tona, para além de uma companheira e interesse romântico que adiciona boas camadas para o arco complexo da protagonista, que vai perdendo sua inocência e suas prioridades à medida que se afunda mais e mais no seu egoísmo e na sua raiva.
A divisão de blocos entre a perseguição de diferentes membros do grupo de Abby é muito sagaz, dando espaçamento para o jogo explorar diversas aéreas e criando degraus para Ellie gradualmente se perder nessa jornada. A violência se mantém como um elemento constante nesse sentido, com bom uso de Tommy para dar início aos ataques (a forma como o jogo conta a trajetória dele através do rastro de destruição que fica para trás é absolutamente fantástico e narrativa visual do mais alto gabarito), até que efetivamente a própria Ellie se torna a perpetradora, com a tortura de Nora e as mortes de Owen e Mel se tornando segmentos gravados no mergulho sombrio da alma da protagonista, eventualmente levando ao seu desfecho solitário e amargo.
Mas são as partes jogadas com Abby que revelam a qualidade profunda da estrutura narrativa não linear. A forma como o jogo te impõe a gameplay com a antagonista, obrigando a fazer coisas que não quer e colocando o jogador no seu ponto de vista é uma forma corajosa e sorrateira de revirar o que entendemos sobre jogabilidade: o jogador não tem como superar esse nível com controles e sim com fases de empatia, ativamente desenvolvendo o outro lado da história (com mais usos de flashbacks bem inseridos) e literalmente colocando o público no papel do outro. Isso muda completamente as expectativas de uma história batida de vingança, construindo um conto que vai além de simpatização com o inimigo para chegar em uma discussão profunda sobre perdão. A gameplay manipula as nossas emoções (de raiva a compreensão; de ódio a assimilação) e faz você repensar (ou pelo menos racionalizar) os atos de Joel. Voltando ao que falei no início da crítica, como continuar uma história já terminada? Você transforma o protagonista no vilão da história de outra pessoa.
Outro elemento da produção que chama muito atenção é sua ambição. Expandindo os horizontes do primeiro jogo, temos uma profundidade maior de mitologia, com a adição de uma guerra entre diferentes facções como pano de fundo da história intrínseca de Ellie vs Abby, e um aumento de escala em termos de cenários explorados. Seattle é o palco principal de uma série de segmentos bem diferentes, de espaços fechados em prédios abandonados, cavernas subterrâneas, ruas tomadas pela natureza e vários campos de batalha entre os territórios dos dois grupos – em relação ao Serafitas, as batalhas são majoritariamente em florestas, enquanto com a WLF temos fortalezas militares. Os espaços são abrangentes, permitindo improvisações e quebra-cabeças visuais, valendo pontuar a inspiração em jogos de plataforma em diversos blocos – nesse sentido, um trecho inteiro de Abby caminhando por um trajeto nos céus é particularmente tenso e especial de jogar.
A variação entre recortes de furtividade, outros de ação e alguns de puzzles (muito mais inteligentes e desafiantes do que no primeiro, principalmente no bloco de Ellie e Jesse) ajudam na dinâmica gostosa da gameplay, sempre em constante mudança, algo que já era perceptível no jogo anterior, mas que é acentuado aqui. O uso dos cenários de maneira prática também traz uma evolução visual, com praticamente tudo sendo usado para combate, seja para esconder, movimentar ou atacar, com poucos elementos “estáticos”. Quase tudo é jogável e labiríntico, voltando ao que me refiro de quebra-cabeças espaciais e de um senso de imersão tático. A qualidade dos designs enfatizam a atmosfera, não só em termos das localidades, mas das variações de climas, temporadas e horários, sempre alterando a jogabilidade, algo aliado a inteligência artificial aprimorada dos inimigos, tanto os humanos (muito mais espertos e com trabalho coletivo, sempre se comunicando), quanto com os infectados, valendo destacar a adição do stalker, uma variação das criaturas que é imprevisível e que “pensa” nos ataques.
As mecânicas de combate estão entre algumas das melhores que já joguei. A fluidez da movimentação, principalmente com a ágil Ellie, é o elemento mais notável da evolução técnica da desenvolvedora, com expansão de travessia, furtividade e controles de ataque/fuga como poder pular, ficar de bruços, desviar e se esconder embaixo de objetos, também mantendo as melhores qualidades do jogo anterior, como a variedade de arsenal, o enfoque em tornar o combate o mais próximo possível de um survival (escassez; criação de materiais; obrigação de ser tático em escolhas de luta) e a sensação constante de perigo. Essa maior agilidade carrega consigo novas características de contra-ataques e esquivas que agregam muito à jogabilidade. Interessante também pontuar a diferença entre Ellie, que é mais esguia e rápida, com os combates com Abby, musculosa não apenas para caracterização, mas sim para alterar o estilo de jogo, mais bruto, direto e lento. Isso fica claro nas partes de “plataforma”, mais fáceis com Ellie do que com a Abby, que além de “dura”, também tem medo de altura, mais um detalhe de personalidade que adiciona uma camada à gameplay.
Um último ponto que gostaria de ressaltar é a valorização desse jogo para níveis. Em um momento temos um bloco de perseguição de carro; no outro estamos descendo um prédio abandonado; depois estamos desbravando um terreno com armadilhas; e assim em diante. Diferente do primeiro jogo, que tem fases mais repetidas (quem aí se lembra dos mini-blocos que temos que ficar carregando a Ellie), The Last of Us Part II tem um senso narrativo de variação que é espetacular. O jogo parece estar sempre se renovando e te contra-atacando quando você se acostuma com um estilo de jogabilidade. As partes de plataforma e de puzzles são minhas preferidas, mas o exercício de terror está a todo vapor, bem como os trechos mais próximos de jogos de tiro. Um em particular me marcou, que é o núcleo que precisamos encontrar um sniper. É uma parte frustrante, que te leva a ter raiva do inimigo, até que descobrimos que o atirador é o Tommy.
Esse lado da narrativa é o que faz o jogo ser tão perspicaz para mim. Ele te manipula de uma tal forma, fazendo você sentir raiva de personagens queridos e simpatia por antagonistas de uma maneira que não sei ser possível em outro tipo de arte como essa, em que a mídia interativa de video games ativamente te deixa mais próximo dessas sensações de raiva, identificação, alegria e tristeza com os personagens. É por isso que a recepção à época do lançamento foi tão divisiva, porque a produção quer provocar, quer te deixar desconfortável, quer te fazer sentir a ambiguidade moral do texto e, mais do que tudo, quer espelhar o arco de compreensão das duas protagonistas com a própria jornada do jogador. Não tenho certeza se algum outro jogo soube utilizar gameplay e os aspectos de interação de jogos de uma forma tão articulada com o drama e com a construção de uma narrativa.
O flashback do último encontro de Joel e Ellie é um soco no estômago não só pela cena em si, mas pelo subtexto: Abby roubou a vida de Joel, mas também a oportunidade de Ellie perdoá-lo. E o que The Last of Us Part II ensina ao longo de sua história é perdoar o imperdoável, seja da parte dos personagens, seja do jogador, sendo que exatamente por essa razão, depois de tanto rancor e sacrifícios, o final é extremamente apropriado como fechamento de uma jornada de vingança que se revela uma trajetória madura de compreensão, empatia e remorso. Mais do que um roteiro profundo, a estrutura da produção, seja a não linearidade, seja a divisão de partes entre Ellie e Abby, é que eleva a qualidade da história através da mídia única de uma gameplay. Não enxergar a riqueza e a genialidade dessa abordagem interativa é, na minha visão, a mesma coisa que reduzir essa obra-prima a um simples pensamento de “vingança é ruim”. Tem muito mais do que isso aqui.
The Last of Us Part II (Remaster)
Desenvolvedora: Naughty Dog Software
Lançamento: 19 de janeiro de 2024
Gênero: Ação, Aventura
Disponível para: PS5