A segunda temporada de The Sandman chega cercada de expectativa, não só pela força do material de origem, mas porque a primeira temporada conseguiu o improvável: adaptar uma HQ complexa, mística e profundamente filosófica sem perder o pulso da narrativa e sem sacrificar sua natureza quadrinesca e literária. Infelizmente, o novo ano também chega cercado de polêmica, considerando que a decisão de finalizar a série depois de apenas duas temporadas pode ser devido às alegações de assédio sexual que surgiram contra Neil Gaiman. É uma pena, mas, de qualquer forma, a nova leva de episódios avança e condensa o restante da saga de Morpheus (Tom Sturridge). Aqui, vemos um Sonho que amadureceu, que ainda é rígido e orgulhoso, mas mais aberto ao erro e à mudança, ao passo que o Sonhar se transforma e os Perpétuos começam, de fato, a se manifestarem como forças em colisão.
Ao contrário da primeira temporada, que dividia claramente seus dois arcos e sofria com certa quebra de ritmo entre eles, a segunda abraça a fragmentação como estrutura. Os episódios se tornam quase fábulas autônomas, mas ainda assim costurados por um fio temático comum (o arco de Morpheus como corrente narrativa), com a reconstrução do que foi desfeito, tudo sob a profecia sombria de Destino (Adrian Lester) de que a reunião da família seria o estopim de uma cadeia de eventos de mudanças em vários mundos e dimensões. A fragmentação deliberada também traz mais ousadia à forma: temos capítulos com tons, ritmos e atmosferas muito distintos, que vão do drama intimista ao épico mitológico, passando pela fantasia sombria e pela alegoria pura. A produção parece agora mais confiante em deixar que o material de Gaiman respire, mesmo que isso, por vezes, sacrifique o dinamismo tradicional das séries de streaming e que a trama nem sempre tenha uma organicidade completa, com elementos se tornando esquecidos rapidamente, como a presença de Nada (Deborah Oyelade), que é a primeira “aventura” de Morpheus.
Estou me adiantando, porém. No episódio de abertura, Season of Mists, durante o divertido encontro dos Perpétuos, Morpheus é provocado por Desejo (Mason Alexander Park) a revisitar seu maior erro: a condenação da rainha Nada ao Inferno, séculos atrás. O arco do protagonista retornando ao Inferno para libertar sua antiga paixão é um pouco súbito, com uma decisão desse porte sendo tomada depois de alguns diálogos com a Morte, mas dá a abordagem do restante da temporada, que muda bastante o tom do ano de estreia com Morpheus traçando uma jornada de reparações e remorso. A descida é o primeiro grande espetáculo da temporada, mas o que encontra lá foge de qualquer expectativa, já que Lúcifer Estrela da Manhã (Gwendoline Christie), cansada de seu cargo, abdica do trono e entrega a chave do Inferno ao protagonista, espalhando caos em múltiplas esferas do cosmos. Essa passagem traz um dos momentos mais fortes do arco inicial, quando Lúcifer tem suas asas arrancadas diante de Morpheus, um gesto de vingança silenciosa que o coloca no centro de uma disputa política e metafísica de grandes proporções.
A condução visual desse início de temporada é eficiente, se não exatamente marcante, mas tem uma trama meio protocolar entre a convocação de Destino e a decisão de Lúcifer. Nada aqui chama muito atenção além da culpa de Morpheus, mas são as consequências desse evento que, de fato, fisgam o espectador, passando a retratar a herança indesejada recebida pelo protagonista. Em The Ruler of Hell, o Sonhar é tomado por delegações de seres sobrenaturais de todos os reinos possíveis — deuses nórdicos, entidades japonesas, fadas e demônios —, todos interessados em herdar o trono do Inferno. Gosto de tudo nesse bloco, com a batalha verbal de Sonho contra os pretendentes à chave sendo, novamente, um dos grandes acertos da temporada, especialmente o confronto com Azazel (animação monstruosa e desorientadora). Num jogo de manipulação e de naturezas mitológicas, Sonho só vence porque aprendeu a escutar, com a solução final com os anjos sendo um desfecho perfeito para tudo. O esperado encontro com Nada é meio decepcionante, com a personagem saindo de cena quase tão rapidamente quanto entra, sendo esquecida pelo restante da temporada, mas a antiga rainha é a primeira de muitos retornos ao passado do protagonista, reforçando um ponto central da temporada: há erros que não podem ser reparados, por maior que seja o arrependimento.
Entre essas disputas, a série encontra espaço para momentos de introspecção e poesia, como o episódio More Devils Than Vast Hell Can Hold. Nele, somos levados ao passado, mais precisamente ao encontro de Morpheus com Shakespeare, em 1593, quando o Sonho inspira o dramaturgo a escrever Sonho de uma Noite de Verão. A encenação da peça diante do rei Auberon, da rainha Titânia e de toda a corte das fadas cria uma ponte emocional entre o universo humano e o do Sonhar. É um episódio que destoa do restante pelo lirismo, mas que ajuda a reforçar a dimensão simbólica que a série abraça cada vez mais. É possível notar como a direção de arte, no geral, encontra um novo equilíbrio. O Sonhar ganha mais texturas, mais verticalidade, mais contrastes. O uso da luz também é mais inteligente, com menos névoa artificial e maior exploração de sombras projetadas e iluminação lateral, que evocam sensações de segredo e memória.
Entre os Perpétuos, temos boas novidades. Desejo continua fascinante, mesmo com menos tempo de tela. Desespero, ainda que mal aproveitada, ganha ao menos um momento de brilho ao lado do irmão, como um espelho distorcido que enfim começa a ganhar contornos. O destaque, porém, é Delírio: com sua chegada, a série abre as portas para o caos poético e o nonsense organizado que os quadrinhos tão bem exploram. A personagem é interpretada com delicadeza e energia por Esmé Creed-Miles, que encontra o ponto certo entre fragilidade, fúria e surpresa. Suas interações com Sonho são imprevisíveis, e é nela que a série encontra a centelha de novidade que precisava para se renovar. É uma pena que a narrativa seja condensada e corrida, porque acabamos vendo poucas interações de Morpheus com alguns de seus irmãos, sendo que a série facilmente se beneficiaria de um espaçamento maior entre as tramas.
Ainda assim, o arco de Brief Lives nos dá um gostinho bacana disso, quando Delírio pede ajuda ao irmão para encontrar Destruição, o Perpétuo desaparecido. O que inicialmente parece apenas uma busca por um parente distante logo se transforma em uma jornada de autodescoberta. A presença de Delírio, com seu humor errático e sua sabedoria inocente, introduz um novo dinamismo ao protagonista, que se vê constantemente desafiado por ela a abrir mão do controle que tanto valoriza. A jornada dos dois os leva a encontrar antigos contatos de Destruição, como Ishtar, uma deusa do amor esquecida pelo tempo, que protagoniza uma das cenas mais poderosas da temporada: sua dança final em um clube decadente, um ato de libertação que resulta em uma explosão devastadora. A violência da cena marca um ponto de virada na busca, que se aprofunda ainda mais no episódio The Song of Orpheus.
Em um longo flashback à Grécia antiga, vemos o filho de Morpheus com Callíope, Orfeu, perdendo sua amada Eurídice e implorando ao pai por ajuda. Essa história não apenas ecoa a mitologia clássica, mas também antecipa o dilema que Morpheus enfrentará ao final da temporada. A relação com Orfeu é retomada em Family Blood, quando Morpheus e Delírio finalmente encontram Destruição, que explica sua decisão de abandonar os deveres de Perpétuo. A despedida desse irmão, interpretado com serenidade por Barry Sloane, numa ironia curiosa com a posição do irmão como um ser da devastação, é um dos momentos mais melancólicos da série, e a reconciliação de Morpheus com Orfeu, seguida do pedido do filho para que o pai o mate, é uma cena devastadora. O ato de tirar a vida do próprio filho sela o destino de Morpheus, pois as Fúrias o condenam por derramar sangue de família.
A partir daí, a temporada assume tons de tragédia inevitável com um enredo dramático maduro. Em Time and Night e Fuel for the Fire, o protagonista tenta preparar o Sonhar para o cerco iminente das Fúrias, enquanto vê aliados e inimigos se posicionarem em lados cada vez mais instáveis, incluindo seus pais, em dois encontros muito bem escritos para representar o tamanho dessas entidades e a mudança do protagonista. A presença de Loki e Puck, com suas malícias habituais como agentes do caos agregam à narrativa, mas não gosto tanto da participação de Lyta Hall se unindo às Fúrias em busca de vingança – a presença lateral de Johanna Constantine e o Coríntio reformado, numa subtrama romântica, também soa meio deslocada narrativamente, se ainda não totalmente desinteressante. De qualquer forma, o cerco se fecha nos episódios finais quando a fúria ancestral se volta contra o Rei dos Sonhos. Diferente da postura combativa que o público poderia esperar, Morpheus escolhe não lutar contra seu destino, preparando a sucessão de seu trono. O bebê Daniel, que havia sido sequestrado, é transformado no novo Sonho, simbolizando a renovação do arquétipo e a perpetuação do Sonhar. A despedida de Morpheus é silenciosa e profundamente tocante, um momento de aceitação que coroa a construção do personagem ao longo de duas temporadas.
Durante toda essa fase de mudança do protagonista, a atuação de Tom Sturridge continua como pilar central. Seu Morpheus agora tem mais nuances, mais microexpressões, mais humanidade, sem nunca perder a frieza alienígena que o caracteriza. A maneira como se curva para ouvir, como aperta os olhos ao tomar decisões, como sussurra sentenças com autoridade velada: tudo isso constrói um personagem que evolui sem jamais trair sua essência. Sturridge faz do silêncio uma arma, e sua contenção dramática é um exemplo raro de atuação minimalista na TV de fantasia. Se a primeira temporada era sobre reconstrução, esta é sobre remorso e renúncia. Sonho está diante de seus erros e de suas obrigações como monarca e irmão. Seu confronto com Lúcifer, seus diálogos com Delírio, seu reencontro com Nada e sua conversa final com Morte consolidam um personagem que, apesar de onipotente, é profundamente falho. E é nesse paradoxo que The Sandman encontra sua grandeza: ao fazer da fantasia de seres cósmicos um espelho dos limites do humano.
A segunda temporada é mais densa, mais melancólica, menos linear e, por isso mesmo, mais parecida com a obra original. Há decisões corajosas, imperfeições estruturais e momentos de puro lirismo. É perceptível que a série se beneficiaria de mais uma ou duas temporadas, mas a condensação da história funciona. Não é uma temporada para quem busca ação constante, mas para quem está disposto a se perder nos labirintos do tempo, da memória e do desejo. A produção abraça por completo a natureza trágica da obra de Neil Gaiman e entrega um final que, embora doloroso, é inevitável. A decisão de Morpheus de aceitar a própria morte e permitir que Daniel assuma o manto do Sonho não é apenas um desfecho narrativo, é a conclusão natural de um arco que começou com um personagem rígido e orgulhoso e termina com alguém capaz de abrir mão do poder em nome de algo maior. A série atinge, assim, um grau de maturidade, que se solidifica no excelente epílogo protagonizado por Jacob Anderson como uma nova versão bem diferente e já mais humana do seu antecessor, enquanto àqueles à sua volta se despendem do nosso querido protagonista. Quando os créditos finais sobem, fica a sensação de que testemunhamos o fim de uma Era onírica e o nascimento de outra.
The Sandman – 2ª Temporada | Reino Unido, EUA – 2025
Criação: Neil Gaiman, David S. Goyer, Allan Heinberg
Direção: Jamie Childs
Roteiro: Allan Heinberg, Jim Campolongo, Austin Guzman, Ameni Rozsa, Alexander Wise, Shadi Petosky, Greg Goetz, Marina Marlens, Vanessa Benton, Jay Franklin
Elenco: Tom Sturridge, Gwendoline Christie, Boyd Holbrook, Jenna Coleman, Mason Alexander Park, Kirby Howell-Baptiste, Patton Oswalt, Stephen Fry, Donna Preston, Razane Jammal, Sanjeev Bhaskar, Vivienne Acheampong, Nina Wadia, Ferdinand Kingsley, Vanesu Samunyai, Asim Chaudhry, Souad Faress, Ernest Kingsley Junior, Melissanthi Mahut, Benjamin Evan Ainsworth, Cassie Clare, Esme Creed-Miles, Ann Skelly, Douglas Booth, Adrian Lester, Freddie Fox, Jack Gleeson, Ruta Gedmintas, Umulisa Gahiga, Steve Coogan, Barry Sloane, Laurence O’Fuarain, Rosie Ede, Olamide Candide-Johnson, Phoebe Nicholls, Andre Flynn, Kristofer Kamiyasu, Lyla Quinn, Jacob Anderson, Ruairi O’Connor, Indya Moore, Wil Coban, Rufus Sewell, Adwoa Akoto, Samuel Blenkin, Tanya Moodie
Duração: 584 min. (11 episódios)