Em 1996, os Thunderbolts surgiram basicamente do nada depois que os Vingadores foram dados como mortos e, no ano seguinte, quando seus integrantes tiveram suas identidades secretas reveladas, foi um grande choque e um belo de um trunfo na manga da Marvel Comics fazendo o inesperado. Agora, quase 30 anos depois, a Marvel Studios faz algo parecido, ainda que sem relação alguma com identidade secreta já que não há nada disso no filme que carrega o nome do grupo seguido de um asterisco. O que vemos no longa escrito por Eric Pearson e Joanna Calo, com direção de Jake Schreier é uma subversão do que se espera do gênero e do que se espera até mesmo da Marvel pós-Ultimato (normalmente filmes e séries ruins na cabeça de muitos, mas não na minha). Pela janela vão os fogos de artifício, as piadinhas, os exageros, as cores espalhafatosas e tudo mais nessa linha do mais do mesmo, que são substituídos por uma abordagem psicológica e dramática que é tonalmente muito diferente do que a grande maioria dos filmes da produtora, com até mesmo os figurinos de Sanja Milkovic Hays e a direção de fotografia de Andrew Droz Palermo seguindo a linha do absoluto comedimento “sujo e monocromático”.
Claro que há humor, mas esparso, e muitas lutas, mas elas são, basicamente, uma mera sucessão de socos e chutes – bem coreografados e bem dirigidos, vale dizer – sem martelos superpoderosos, sem frases de efeito, sem raios coloridos e sem armaduras brilhantes, tudo ditado pelas características e poderes (ou falta deles) dos membros do grupo de desajustados que inadvertidamente se reúnem com um objetivo em comum que é bem distante de lutar contra alienígenas que invadem a Terra, mas sim algo bem mais prosaico, como a vontade de socar quem lhes fez mal e salvar Bob (Lewis Pullman em uma ótima atuação repleta de trejeitos e nuanças) no processo. Sei que todo mundo que acompanha trailers e corre atrás de spoilers (algo que nunca compreenderei) sabe quem Bob é, mas, mesmo assim, em respeito aos parênteses que segue o título da presente crítica, nada será dito sobre ele para além de o personagem não só ser integral à trama, como alguém tão desajustado e tão problemático quanto os integrantes da equipe que se forma ao seu redor (mas, nos comentários, os spoilers estão liberados).
E que equipe é essa? Bem, para começo de conversa, temos a protagonista e líder inconteste Yelena Belova (Florence Pugh), irmã adotiva de Natasha Romanoff e a Viúva Negra II do Universo Cinematográfico Marvel; o arrogante John Walker (Wyatt Russell), um projeto de Capitão América que não deu muito certo; e a invisível e intangível Ava Starr (Hannah John-Kamen), a Fantasma, inimiga do Homem-Formiga e da Vespa, todos trabalhando, mas um sem saber do outro, para a elétrica e deliciosamente maquiavélica diretora da CIA Valentina Allegra de Fontaine (Julia Louis-Dreyfus que, apesar de eu duvidar muito que a atriz tenha pesquisado sobre sua personagem, criada pelo grande Jim Steranko, conseguiu capturar muito bem a empáfia de sua versão em quadrinhos, uma condessa namorada do Nick Fury original que é, também, agente da S.H.I.E.L.D.) que, por estar passando por um processo de impeachment, faz de tudo para se livrar das provas contra ela. Correndo por fora, mas nem tanto, temos o entusiasmado Alexei Shostakov (David Harbour), o Guardião Vermelho, para todos os efeitos pai de Belova e, finalmente, Bucky Barnes (Sebastian Stan), o Soldado Invernal, agora um deputado federal que ajuda na CPI contra a diretora. Como se pode ver, talvez com exceção de Bucky, o que temos é a raspa do tacho do UCM, personagens que são parecidos em poderes e também em psicologia, todos (incluindo Bob) profundamente traumatizados e com graves problemas psicológicos que quase fazem do filme uma versão sombria e super-heróica de Divertida Mente, apenas com emoções como depressão, solidão, irritabilidade, tristeza e desesperança, um paralelo que, percebo agora, se encaixa particularmente bem ao desenrolar do longa.
Posso dizer, sem medo de errar, que Thunderbolts* se parece mais com um filme das fases iniciais da Marvel, no sentido de ele ser mais tímido com cenas de ação – e ter a coragem de não entregar ao espectador aquilo que ele se acostumou a esperar, repito -, mas que, ao mesmo tempo, jamais poderia ser um filme de “começo” de saga em razão justamente das personalidades complicadas e convergentes dos personagens, que, na estrutura geral desse universo, precisavam ser introduzidas antes em obras separadas. Estamos falando de ex-vilões e anti-heróis que não têm lugar no mundo, não têm propósito, que estão realmente perdidos, vivendo de uma missão atrás de outra e bebendo nos intervalos como Yelena deixa bem claro já na largada. Não quero dizer com isso que o longa mergulha fundo na complexidade do assunto e destrincha e desenvolve seus personagens com a qualidade de um Taxi Driver, pois esse tipo de comparação – que muita gente faz de acordo com sua conveniência – é até idiota, mas é inegável que a dupla de roteirista tenta algo diferente e, ao focar na personagem de Pugh, mais preocupada em atuar do que ser uma heroína, ainda bem, que serve de porta-bandeiras de todos os demais, acerta bem mais do que erra e entrega um filme de super-herói que não parece muito com um filme de super-herói, especialmente não um da Marvel ou da DC.
Tenho certeza de que muitos reclamarão de que o embate final é anticlimático, que é uma “saída fácil” e assim por diante, mas tenho para mim que, muito ao contrário, é justamente por escolhas assim que eu digo e repito que Thunderbolts* veio para subverter um pouquinho o gênero, trazendo frescor a uma linha de montagem já desgastada. Sei que, para muitos, o que interessa é ver Deadpool socando Wolverine e os dois socando personagens resgatados do fundo do baú da nostalgia, mas isso é que é o fácil e o banal para mim. Isso é que é o mais do mesmo. Thunderbolts* coloca de cabeça para baixo o “filme de origem de supergrupo”, algo que é amplificado pelo espertíssimo final marketeiro de de Fontaine que finalmente explica o asterisco e não se trai em momento algum, mantendo-se dentro do espírito de sua proposta quase niilista do começo depressivo ao final desconcertante. Não acho que o longa mudará alguma coisa no cenário da Marvel Studios que continuará apostando no mais do mesmo (talvez com exceção, espero, de Quarteto Fantástico) com o que já se sabe – inevitável e spoilerentamente – dos próximos filmes dos Vingadores, mas o mero fato de ele existir do jeito que existe já traz algum alento. A versão audiovisual dos Thunderbolts dos quadrinhos pode não chegar ao mesmo nível de impacto inicial – e efêmero, vale lembrar – que teve nas HQs, mas percebe-se o esforço da equipe criativa em quebrar um pouco do molde, oferecer mais do que importa e encontrar maneiras bem construídas de dar relevo e longevidade ao vasto rol de personagens secundários apresentado ao longo dos anos.
Obs: Há duas cenas pós créditos. Uma logo depois que os nomes do elenco acabam e que é só simpática e outra lá no final que é mais longa do que a média e se passa 14 meses depois dos eventos do filme, revelando-se consideravelmente ambiciosa, quase que como um “mapa” do futuro do UCM.
Thunderbolts* (Idem – EUA, 2025)
Direção: Jake Schreier
Roteiro: Eric Pearson, Joanna Calo (baseado em história de Pearson)
Elenco: Florence Pugh, Sebastian Stan, Wyatt Russell, Olga Kurylenko, Lewis Pullman, Geraldine Viswanathan, David Harbour, Hannah John-Kamen, , Julia Louis-Dreyfus, Chris Bauer, Wendell Edward Pierce, Violet McGraw, Alexa Swinton, Eric Lange, Chiara Stella, Stefano Carannante
Duração: 126 min.