Desde sua abertura, Uma Batalha Após a Outra impõe um ritmo inquieto, quase nervoso. Não é um filme que deixa o espectador acomodar-se, empurrando, sacudindo e desafiando a audiência. Essa inquietação não é defeito, é ferramenta narrativa. Paul Thomas Anderson parece querer que o caos faça parte da linguagem do filme, e, com isso, ele infiltra tensão em cada frame, em cada elipse temporal e em cada cena de ação. O primeiro ato já revela que ele não almeja simplesmente contar uma história linear de vingança ou resgate; quer que a jornada emocional se confunda com a luta política, que o terreno do íntimo e o do público se invadam mutuamente em uma bonita história sobre um pai e sua filha.
O roteiro, que Anderson assinou inspirado, em parte, pelo livro Vineland de Thomas Pynchon, estrutura a trama em núcleos que se enlaçam: Bob (Leonardo DiCaprio), ex-revolucionário, agora vivendo sob disfarce, é arrastado de volta à ferida quando um velho antagonista reaparece com ambições cruéis. Sua filha Willa (Chase Infiniti) funciona não só como motivo de urgência, mas como presença que carrega o passado e pressente o presente. E a ex-aliada Perfidia (Teyana Taylor) é mais presença fantasmática e gravidade ideológica do que uma personagem propriamente dita. É nessa constelação de relações que Anderson pinta o que realmente importa: as dinâmicas familiares, que são de fato o coração da obra, mantendo elementos íntimos em meio ao colapso do mundo ao redor e da constante tensão da trama.
A eficiência desse entrelaçamento depende, em boa parte, da trilha sonora. Jonny Greenwood, parceiro constante de Anderson, entrega aqui uma das colaborações mais vigorosas da dupla. Sua partitura, frequentemente urgente, por vezes melódica, funciona quase como personagem: permanece na borda da cena, empurrando momentos de virada, construindo momentos de tensão, e até brincando nos momentos de humor. Greenwood mistura orquestra com texturas eletrônicas, e repetições de temas que ecoam constantemente nas cenas. Até acho que o compositor ligeiramente passa do ponto, exagerando no tom ou no uso da música, mas de maneira geral é mais um grande trabalho do artista da Radiohead.
Quanto às performances, no geral, o filme mantém um equilíbrio admirável entre o excessivo e o íntimo. DiCaprio veste Bob com uma combinação de exaustão, humor autodepreciativo e determinação; há momentos em que ele tropeça emocionalmente, e Anderson não acerta totalmente o tom do seu protagonista, mas o personagem é carismático e carrega boa parte da obra. Ele se permite rir de si, se permitir falhar, se transformar em figura quase caricatural sem perder humanidade. Isso só funciona porque ele tem para quem reagir: Willa, como presença silenciosa e olho vivo, dá aos momentos maiores o peso emocional (o que é uma surpresa, quando pensamos no elenco estrelado). Chase Infiniti entrega uma performance de presença que é o fio condutor do plot, enquanto Taylor, com sua complexa Perfidia, permanece no limiar entre mito e falha, com uma personagem caótica que contamina os espaços por onde passa, mesmo fora de tela.
Tecnicamente, a produção é linda. A fotografia de Michael Bauman aposta em composições que conversam com o caos narrativo: planos amplos atravessam paisagens, estradas, neblinas, levando personagens de pontos a zonas limítrofes; cortes abruptos quebram a sensação de continuidade quando é preciso desorientar; cores transitam entre tons naturais e iluminação dramática, segundo o humor da cena. A cinematografia em VistaVision (em 35 mm) conferiu ao filme uma textura viva que resiste ao tempo digital, com uma abordagem artesanal em meio a uma narrativa acelerada.
A cena de perseguição em carro, que vem sendo bem destacada por aí, é emblemática. Não é uma perseguição tradicional, vale pontuar. Anderson tenta desmontar a lógica hollywoodiana de perseguição para recriar algo que brinca com a estrada e sua geografia, e com os cortes entre os veículos. Em vez de pura ação cinética ou adrenalina, o diretor brinca com perspectivas. Mesmo que ela não seja a melhor perseguição da história do cinema, como alguns têm falado, é uma das mais frescas em termos de invenção de espaço dentro desse tipo de sequência.
Também merece elogio como Uma Batalha Após a Outra lida com temáticas contemporâneas. O retorno do fascismo, o crescimento de nacionalismos, a ideia de que a memória política não se dissolve, tudo isso está integrado sem explicar demais. Há momentos em que Anderson opta por ambiguidade, penso que até para que a obra não seja um simples panfleto, mas insinua críticas afiadas: facções extremistas reagrupando-se e sociedades secretas ressurgindo como fermento autoritário. O filme sugere que ideologias extremas são um problema do presente, não de um passado distante; que a normalização do autoritarismo pode se dar em silêncio (algo bem próximo da realidade global atual). Ao mesmo tempo, é um filme de ação e comédia dramática, e essa miscelânea de tons poderia quebrar tudo, mas Anderson segura o passo na maior parte do tempo, conseguindo que o tom híbrido funcione como parte de sua assinatura.
Agora, é verdade que a obra tem seus problemas, razão pela qual não a vejo como a obra-prima que tem sido laureada. Primeiro de tudo, sinto que profundidade dramática se dissolve à medida que a trama avança. Alguns personagens se tornam mais e mais caricaturas (o coronel antagonista, interpretado por Sean Penn, cai em exageros que aproximam dele uma figura quase satírica, assim como o divertido coadjuvante de Benicio del Toro). Há momentos em que o humor, que é uma marca da narrativa, cresce demais, e o filme se distancia do drama. Esse exagero funciona como estilo, mas também como escudo: protege o filme de tornar-se melodrama pesado, mas em troca retira parte da gravidade temática que foi sugerida no início. À medida que a história caminha, o filme se torna mais uma desventura de Bob do que algo sobre a revolução em si (eu gostaria de ter visto bem mais do French 75, por exemplo).
A narrativa, por vezes, prefere movimento à densidade: o argumento político fica em plano de fundo, mais sugestão do que exploração. Temos um grande salto temporal inicial que joga uma sombra nas motivações dos personagens, sendo que às vezes sentimos que eles são forçados pela trama, não guiados por ela. Falta, em suma, desenvolvimento do drama, dos temas e, principalmente, dos personagens em si para que o material tenha mais substância. Comparado a filmes anteriores de Anderson, que construíram personagens em níveis profundos, como O Mestre, Sangue Negro e Licorice Pizza, essa produção não oferece tanto esse estudo de personagem que marcou boa parte da filmografia do PTA.
Mesmo assim, o saldo final é mais do que positivo. Uma Batalha Após a Outra é uma obra ambiciosa, cheia de destaques formais e com uma tremenda energia narrativa, que arrisca sem perder a coesão, que mistura humor, choro e tensão de forma ousada, até mesmo flertando com a sátira. É um filme que seduz pela sensação de que o cinema ainda pode ser aventura e ideologia, não apenas espetáculo vazio, caminhando num terreno atualmente quase infértil entre crítica social e cinema inventivo. Se não é obra-prima, é obra grande; e obras grandes merecem ser vistas, debatidas, somadas e inspiradas. Gosto de pensar que, para Anderson, esse é o filme em que ele tomou o caos como matéria-prima. E, mesmo entre tropeços, deu certo.
Uma Batalha Após a Outra (One Battle After Another) – EUA, 2025
Direção: Paul Thomas Anderson
Roteiro: Paul Thomas Anderson
Elenco: Leonardo DiCaprio, Sean Penn, Benicio del Toro, Regina Hall, Teyana Taylor, Chase Infiniti, Alana Haim, Wood Harris, Shayna McHayle, Paul Grimstad, Dijon Duenas, Tony Goldwyn
Duração: 162 min.